Foram nove dias. Duzentas e dezesseis horas. Quase treze mil minutos. Tempo suficiente para mergulhar na viagem que o Festival Internacional de Folclore proporciona pelos quatro cantos do mundo, mas insuficiente para consumir tudo o que ele oferece a cada novo gesto. Há 22 anos, Passo Fundo recebe uma lona, um palco e uma infinidade de culturas dispostas a dar um pouco daquilo que vivem em seus países em troca do sorriso e da receptividade dos passo-fundenses.
Ainda que sejam mais de duas décadas, a cidade ainda não se acostumou com a despedida e enquanto o segundo final de semana do evento se aproxima, a angústia parece chegar agarrada em seus pés, buscando por atenção, encontrando morada no coração daqueles que vivem intensamente o espetáculo de cultura que é o Festival. Da objetividade de Paulo Dutra, coordenador e presidente do evento, ao encantamento de Kauã, menino de nove anos que encontrou o Festival pela primeira vez, o sentimento de quem passa pelo Casarão da Cultura nasce no coração e ganha vida no brilho dos olhos, no sorriso e nas palmas incessantes ao fim de cada apresentação.
E o circo da paz, o Casarão da Cultura, que nasce ali, em meio ao Parque da Gare e parece fazer parte da paisagem da cidade, chega ao seu fim. O que não tem fim são as memórias de quem, nem que seja por uma noite, vivenciou o Festival. Guardadas na mala, vão espremidas entre as roupas e os regalos que Passo Fundo destina a cada grupo. O espaço só não é menor porque também deixam muito para a cidade. E da bagagem de quem vai ao coração de quem fica, o Festival é uma verdadeira troca.
A doce aventura de Kauã
Lembranças não vão faltar para Kauã. Na quarta-feira a noite, o menino de nove anos encontrou o Festival pela primeira vez. Chegou na lona por volta das 19h, de regata e bermuda. O frio do fim de tarde não foi suficiente para tirar a atenção do menino que, no canto do Casarão, olhava atentamente para o palco e parecia ter esquecido de voltar para casa.
Tão atento que chamou a atenção dos voluntários. “Ele estava sentado ali na cadeira... Estava sozinho e parecia assustado. Quando vimos que ele estava mesmo sozinho, fomos conversar com ele”, conta Éverton Maliska, voluntário. Na conversa, descobriram que Kauã mora com a avó e um tio e que havia saído de casa sem avisar, motivado apenas pelo encantamento que o Festival lhe causou. “Como voluntários, temos direito a lanches... então peguei o sanduíche e o refrigerante e damos pra ele.”
No final da noite, Kauã ganhou de Éverton um ingresso para a noite de quinta-feira. “Os olhos dele brilhavam e ele disse que viria na quinta”. Além do ingresso, Kauã ganhou carona, já que a intenção do menino era voltar para a casa, no bairro Hípica, de ônibus – assim como chegou ao Parque da Gare. “Decidimos levar ele embora e avisar a avó que ele iria voltar na outra noite”, conta Donara Granja Machado, que levou Kauã embora.
A atenção dos voluntários encantou o menino que, na noite de quinta-feira, assistiu o espetáculo ao lado deles. Sentado na primeira fila, Kauã dividia os olhares entre o palco e o telão. Não piscava. O pé era a única coisa que se movimentava, embalado pelo ritmo da música. “Gosto muito da Martinica porque eles são muito coloridos. Eu vim na quarta-feira, porque sabia que ia ter Festival. Moro com a minha vó e o meu tio. Eles não vieram, então eu vou comprar um DVD do Festival e vou levar para eles. É muito legal. Eu gosto de vim porque tem música, tem dança”, conversa entre sorrisos.
O resultado? Kauã prometeu voltar na sexta-feira. “Ganhei o ingresso para sexta também e fiquei feliz. Eles são muito legais e o Festival é muito legal. Gostei muito de vim, vou contar pros meus amigos”. Sem um celular ou uma câmera fotográfica, Kauã registrou tudo o que viu nas lembranças que carrega e nas memórias que, um dia, se transformarão em histórias.
Dos olhos de Kauã para a bagagem dos grupos
Os camarins não são suficientes para comportar a alegria dos quinze grupos que participam do Festival de Folclore. A proximidade com o final do evento motiva as fotografias, o contato, a conversa e os abraços. E ainda que as malas ainda não estejam arrumadas, cada um bem sabe o que levar da cidade.
Hernan Canavase, de 24 anos, dança, na Argentina, há 17 deles. Ainda que não tenha comprado, gostaria de levar uma almofada que encontrou no shopping. “Uma coisa para levar na minha mala? O que eu posso levar? Levaria uma almofada escrita, em português: Eu, um coração, você. Ou um copo com uma pelúcia dentro escrito ‘Eu amo você!’, se diverte. O sentimento de gratidão, segundo ele, vai junto. E também é assim para o russo Stepanov Aital, de 22 anos: “Estamos levando muitos sentimentos bons, as pessoas por aqui são muito positivas, muito felizes. E adoramos a natureza!”, comenta.
Para Ana Argueta, de 16 anos, e Jonathan Yovani Carrera Aragon, de 18, é a primeira vez participando de um Festival. Representando a Guatemala, eles destacam as amizades como uma lembrança importante do evento. “Vamos levar uma lembrança muito bonita. Fotografias e filmes, também vamos levar. E, principalmente, muitos amigos que conseguimos fazer aqui. Essa é a parte mais bonita: conhecer muitas pessoas de países diferentes”, comenta Ana. “Foi um momento muito bonito. Conhecemos pessoas incríveis e culturas muito diferentes da Guatemala. No nosso país tem muita cultura, mas aqui... é uma infinidade de culturas!”, opina Jonathan.
Anthony Marem, bailarino da Martinica, tem uma ideia um pouco diferente. Se pudesse levar algo? “Ahhhh! As brasileiras! As mulheres brasileiras!”, ri. Para Christella Paderna, que dança junto com Anthony o churrasco é uma das coisas que fará falta.
Além, é claro, do público. Público esse que amou a Martinica e aplaudiu em pé toda a animação vista no palco. O segredo para tudo isso é o amor que colocam em cada coreografia. “Dançamos com o coração. E amamos o que fazemos!”. Enquanto a Martinica deseja levar o churrasco gaúcho para o país, o pessoal de Honduras se encantou mesmo pela caipirinha. Jennifer Navarrete, de 18 anos, puxa o coro e é acompanhada por Josué David Oviedo, de 21: “Caipirinha! Caipirinha! Caipirinha!”
Nas lembranças dos voluntários
E para os voluntários que acompanham de perto toda a intensidade dos grupos e toda a cultura espalhada pela cidade ficam as lembranças de um evento capaz de congregar, em um mesmo espaço, diferentes sotaques e ideologias. Rafaela Weber Cecconello, de 24 anos, é psicóloga e é a primeira vez que se voluntaria para o Festival. Cuidando dos camarins e desfiles, ela acredita que o Festival é uma experiência única. “Eu estou levando o aprendizado da cultura dos outros povos e o respeito que temos com a cultura. É um aprendizado sem tamanho”.
Junto com ela, trabalhou Isadora Loch Sbeghen, estudante de Educação Física em Porto Alegre. “Eu acredito que o que vamos levar não é só a amizade, mas o trabalho em equipe e as culturas que estamos vivenciando aqui. Acredito que o Festival só acrescenta na nossa vida”, opina. Zeg Goulart, de 23 anos, foi guia da Martinica e concorda com o que as meninas falam. “É meu primeiro trabalho voluntário no Festival. Quando eu era criança era uma coisa que eu sempre quis fazer. Vou levar tudo que aprendi com o povo da Martinica. Aprendi que apesar de falarmos línguas diferentes, somos iguais”, conclui.
E é na noite deste sábado que os grupos se unem, no palco, para encerrar os nove dias de atividades. E o homenageado desta edição, Lupcínio Rodrigues, parece ter vivido de perto o que o Casarão da Cultura proporciona e a música – que será tocada por músicos de todos os grupos na noite de hoje – parece ser muito apropriada ao fim da noite: “Felicidade foi se embora... E a saudade no meu peito ainda mora”.