Coluna: Compulsão

Por Marina de Campos

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Me imagino num desses grupos de apoio para largar o vício. A sala de encontros fica num lugar discreto, no quinto andar de um prédio, ao final do corredor. A plaquinha na porta diz: “Centro de Apoio para Dependentes de Cultura & Artes em geral”, e logo abaixo, em letras menores, “Literatura, música, cinema, teatro, pintura… Seja qual for o seu problema, nós podemos ajudar”. Abro a porta, sinto o cheiro de café passado que vem da mesinha de canto, olho para as cadeiras dispostas em círculo e procuro um lugar. Todos ali são esquisitos, sem exceção – você não veria algo assim nem entre viciados em heroína –, mas me observam com aquele olhar de compaixão característico desse tipo de reunião. É minha primeira vez, por isso devo me apresentar. “Olá, me chamo Marina e… sou uma viciada”.

Comecei com a literatura, ainda no colégio. Ir à biblioteca era como negociar com um traficante: a cada dia escolhia algo mais forte, passei a levar aquilo para todo lado, usava em plena aula, no ônibus, na sala de casa, na cama antes de dormir. Às vezes deixava de dormir para usar. Logo passei a gastar todo meu dinheiro nisso e adquiri outros vícios, como a música, os quadrinhos e o cinema. Acredite, é um caminho sem volta, e o cinema é uma ótima analogia pra isso. Pois numa noite você toma uma dose sem compromisso e nas noites seguintes procura desesperadamente por aquela sensação, mesmo sabendo que não vai se repetir. Então se depara com coisas ainda mais pesadas e – bang! – está viciado em crack sem nem perceber. Clássicos dos anos 40, películas de quatro horas e meia, filmes B da década de 70, lançamentos de todas as nacionalidades imagináveis, raridades e longas censurados, obras renegadas até mesmo pelo próprio diretor. O prazer é imediato, mas o efeito é breve. Nada parece ser o bastante, você precisa experimentar mais. E pensar que começou com algo tão inofensivo quanto um filme do Scorsese. Essas obras de iniciação deveriam vir com um aviso de “cuidado!”, usando o mesmo discurso dos mais velhos em relação a um baseado.

Hoje sinto que minha vida gira em torno disso. Penso duas vezes antes de sair de casa, e se saio fico calculando quantos quadrinhos poderia ter lido enquanto ouvia quantos discos, quem sabe até tivesse tempo pra mais um filme, não teria sido melhor? Como qualquer outro vício, vem deteriorando minha saúde – ah, o sedentarismo, a Coca-Cola como única companhia, a insônia e a falta de sol –, prejudicando minhas relações e me afastando cada vez mais do mundo real. Pode parecer clichê, mas só entende o quanto é difícil quem passa por isso. O quanto você gostaria de relaxar e aproveitar, sem toda essa ansiedade e obsessão infinita. É pior que o álcool, as drogas ou o sexo compulsivo. É um desses “vícios saudáveis” que todos ao seu redor incentivam sem saber do perigo, sem saber que você pode enlouquecer por causa disso.

Sei que é insano, mas acho que o único jeito de dar um fim nessa compulsão é consumir tudo, até a última ponta. Ler todos os livros, conhecer todos os discos, ver todos os filmes, zerar o placar. Sei também que parece impossível, como querer cheirar toda a cocaína do mundo pra tentar se curar, mas não consigo imaginar outro caminho. Na dúvida não paro, vou continuar. Afinal, tenho a vida inteira pra ver se é possível – se não morrer cedo demais por conta do vício.

A propósito, na falta de um jeito melhor de explicar: essa coluna será sobre isso.

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