Ele está presente. Enquanto leio sinto que Gabriel García Márquez está aqui presente. Não, não é um delírio. Depois de vencer as primeiras páginas e mergulhar por completo em sua narrativa, levanto os olhos e o vejo logo ali, acomodado em uma imensa cadeira de balanço que se move muito lentamente, voltada para a janela, quase de costas para mim. Ele olha pra fora, observa o céu nesse momento em que o sol está prestes a se pôr, e lança um sorriso para o movimento das cortinas que mais parecem o peito de uma criança em sono tranquilo, indo e vindo como numa suave respiração. A imagem que faço dele corresponde às suas fotografias mais populares, de vestes brancas, bigode grisalho e uns olhos pequenos e puros demais para sobrancelhas tão espessas.
Aos poucos começo a ouvir seu espanhol de sotaque caribenho ao fundo da leitura, e então sinto uma pontada de emoção: não apenas está presente como também está contando a sua vida para mim. Que privilégio, Gabito. Esse é certamente o auge de todos os seus truques de mestre do realismo fantástico – materializar-se assim para quem lê sua autobiografia, como um espírito generoso que escolhe um fresco fim de tarde para sentar perto da janela e narrar suas lembranças da juventude a quem quiser ouvir.
Enquanto leio não faço qualquer anotação, pois não me importam datas, nomes ou fatos concretos, mas sim o rastro de memórias afetivas que o livro deixará assim que eu o fechar, dolorosa e saudosamente, pela última vez. Não se trata de uma entrevista ou uma fria investigação jornalística – mais respeito, estou ouvindo as histórias de um amigo. Como o golpe de rejeição que sofreu quando seu primeiro livro foi recusado, de onde veio o nome “Macondo” ou o fato de que “Crônica de uma morte anunciada” era para ser uma reportagem na época do crime e só não aconteceu por proibição de sua mãe. Algumas dessas confissões encaro como conselhos preciosos para seguir à risca, como nunca escrever um texto de jornal com preguiça ou só para preencher espaço, jamais mostrar a alguém um conto enquanto ainda é um esboço e nem se deixar levar quando a vida tentar te converter em outra coisa que não escritor (ou jornalista, ou qualquer que seja a sua grande paixão).
No meio disso dou com a ingênua satisfação que existe em descobrir coisas em comum com quem se admira, mesmo que se tratem de detalhes banais que nada têm a ver com o motivo da admiração. Descubro que ele era terrivelmente tímido e tinha pavor de telefone, detestava ficar preso a uma sala de aula, apesar de jornalista não gostava de café, lia quadrinhos e demorou a descobrir o gosto pelo cinema, tentava fugir do vício pelos advérbios terminados em “mente” e jamais escreveu uma linha de ficção que não nascesse da mais pura verdade.
Intitulado “Viver para contar”, o livro narra seus dias antes da fama, até por volta dos 30 anos, e revela uma trajetória inconstante, imprevisível e por vezes desanimadora, como a de todos nós. Aquele Prêmio Nobel antes enigmático e inalcançável agora se revela tão humano que pela primeira vez me permito sonhar sem limites com o ofício da escrita. Mas dói lembrar que ainda havia tanta vida pra ser escrita, e não houve tempo – esse monumental diário permanecerá inacabado, como se no fundo ele quisesse dizer que o que importa mesmo é o percurso incerto de tentativas e derrotas em busca da realização. Perto do seu primeiro aniversário de morte, encerro a leitura e me despeço com o coração aquecido, mas a mente inconformada: volte, Gabo, veja se aparece qualquer tarde dessas com mais histórias pra contar.