Sobre a perda

Com o cancelamento da Jornada de Literatura, leitores e escritores se manifestaram

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Aos primeiros ruídos de um possível cancelamento da Jornada Nacional de Literatura, ainda na semana passada, um misto de incerteza, tristeza e indignação invadiu a cidade. Com a notícia oficializada, as redes sociais foram o espaço escolhido por leitores e escritores para manifestações que apontavam o descontentamento do público diante da decisão da coordenação do evento.  Os usuários da rede, em sua maioria, falaram da vergonha em vivenciar o cancelamento de um evento deste porte, na tristeza de ver que um evento cultural, que já é tradição, perde espaço e, também, apontaram a crise como uma desculpa usada para a falta de incentivo.  As manifestações sugerem, ainda, novas alternativas para que a Jornada seja realizada, ainda que em um formato diferente.  O sentimento se reflete naqueles que vieram de outro lugar para apresentar, em Passo Fundo, aquilo que produzem. Sérgio Vaz, que participou da última edição da Jornada e falou ao público sobre a literatura das ruas, usou o Facebook para falar da vergonha pelo cancelamento.

Frei Betto

De encontro com a posição de Vaz, Frei Betto coloca a responsabilidade do cancelamento na indiferença dos patrocinadores. “Lamento profundamente o cancelamento da Jornada Nacional de Literatura, promovida bienalmente em Passo Fundo, graças à heroica curadoria de Tânia Rosling. Isso comprova que o Brasil considera a cultura uma área que não merece investimento e patrocínio”, inicia. Ele acrescenta: “Um evento tão tradicional, que aglutina milhares de estudantes e professores, e grande público, cancelado por força da indiferença de seus patrocinadores, só reforça a ideia de que, no Brasil, corruptos e corruptores sempre vencem, pois grandes empresas que bancavam o evento e se encontram envolvidas em casos de corrupção, comprovam que estão refém daquilo que a presidente Dilma qualifica de "mal feitos", no momento mais oportuno para demonstrar que a cultura, fomento da ética,  deveria ser exaltada como meio de formação da nossa cidadania”, encerra.

Luciana Savage

Luciana Savaget, que ao lado de Ignácio de Loyola Brandão e de Alcione Araújo (em memória) foi, durante muitas edições, a coordenadora dos debates, fala da indignação em ver o projeto das Jornadas Literárias interrompido. “É um sentimento totalmente de revolta. É um evento de incentivo a leitura e eu não posso acreditar que o governo não se sensibilize para arrecadar verbas. É um projeto de educação e Ministro da Cultura e o Ministro da Educação sequer receberam ou querem receber os organizadores da Jornada”, comenta. Luciana acredita na Jornada como culminância de um projeto de incentivo à leitura e vê o cancelamento da mesma como um insulto ao leitor. “Como o governo aborta um projeto de 34 anos? É inadmissível. Meu sentimento é de luto, de perda total e ao mesmo tempo de vergonha. A minha frase, hoje, seria: ‘para o mundo que eu quero descer’ porque eu não posso admitir que que esse projeto seja interrompido”, conclui.

Ignácio de Loyola Brandão

Loyola compartilha do sentimento de luto expressado por Luciana. “É um filho que se perde. Há uma semana, a Tania me ligou aos prontos dizendo que estava cancelada a Jornada. Então, a Luciana me ligou. Primeiro ficamos de luto e derrotados porque, no meu caso, são mais de 30 anos que eu vou pra Jornada. É todo um pedaço da minha vida. E, não só da minha vida, mas da cultura brasileira”, inicia. “Depois que a Tania me falou isso, eu fiquei pensando: acho que pelo menos cem mil adultos passaram pela Jornada nesses anos todos. Fora as crianças. O que vai ser daqui pra frente? O que vai ser desse país? Aonde a gente vai?”, questiona. “Pouco a pouco esse processo cultural vai sendo corroído porque o Ministério da Cultura não faz nada pela literatura. Quem que se interessa pela formação de leitores? É muito grave o que acaba de acontecer. E triste. Mas estão destruindo o patrimônio cultural. Que governo medíocre. Que coisa mesquinha. Estou muito fora de mim. Estou desesperançado e nessa idade eu não sei o que vai ser. Mas eu tenho netos e queria ver um futuro pra eles”, lamenta. “O Brasil e o mundo sempre precisaram de leitores.  Um dos instrumentos que existia, e talvez o melhor deles é a Jornada, porque é algo sério, que não se esgota quando terminam as sessões nas lonas; ali apenas começa o processo. As pessoas que estão lá recebem para doar de novo. Sem isso ficamos sem alma, sem nada. É um dos fatos mais graves que já tivemos na literatura nos últimos tempos”, avalia.

No fim, o que fica são as boas lembranças: a primeira lona, que logo ganhou companhia de outras que abrigavam, a cada edição, um novo evento que surgia para somar na cultura proporcionada pela Jornada; as lonas coloridas que nasceram para dar espaço à Jornadinha; as sessões de autógrafos de autores cujos livros ficavam em nossa cabeceira; um mundo mágico que se abria a cada espetáculo de abertura e fazia o tradicional convite: “a Jornada está aberta”. Ainda que sejam mais de três décadas, a cidade não se acostumou com a despedida a cada edição. Não se acostuma, hoje, a um reencontro que vai demorar um pouco mais para chegar. E aquele sentimento, típico de quem passa pelo Circo da Cultura, que nasce no coração e ganha vida no brilho dos olhos quando as luzes se apagam para que o foco seja no palco, se transforma, agora, em silêncio.

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