O público lotou o auditório da Biblioteca da Universidade de Passo Fundo, na quarta-feira à noite, para acompanhar a palestra-debate, com o jurista Luiz Moreira Gomes Júnior, promovida pelo Observatório da Democracia Brasileira e a Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; pesquisador visitante da Universidade de Frankfurt, Alemanha, e ex-Conselheiro Nacional do Ministério Público, Moreira falou sobre “Democracia e constituição, memória e verdade: 52 anos depois”. Em entrevista ao O Nacional, destacou, entre outros assuntos, que o país vive uma confusão de atribuições das instituições e não se sabe exatamente o que esperar delas. Para o jurista, o pedido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff foi aceito por um ato de vingança do presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, e o definiu como golpe, caso seja efetivado.
ON- Como o senhor avalia a atuação do Judiciário no processo da Lava Jato
Luiz Moreira Gomes Júnior - Eu julgo que o Supremo Tribunal Federal não entendeu seu papel em uma democracia complexa como é a brasileira, nem a relação com a mídia. O papel do STF é o tribunal das garantias fundamentais. É para isso que ele existe, portanto, não pode decidir conforme a maioria, conforme pressão popular, ou conforme orientação da mídia. Já houve casos em que membros do STF disseram que o Tribunal tinha decidido com a faca no pescoço. A sociedade brasileira deferiu ao STF muitas expectativas para que seja o guardião destes direitos fundamentais do cidadão e da cidadã. O que está em jogo hoje é justamente a permanência da usurpação e da violação de direitos. Se admitirmos que alguém, contra quem, não há uma acusação, se admitirmos que esta pessoa seja a piada do poder da Presidência da República por vingança, ou por simples ato de capricho, nenhum cidadão ou cidadã brasileiro estará salvo de qualquer ajustes de contas. Teremos estabelecido uma fragilidade radical no sistema de Direito. Se a presidente da República pode ser deposta por um simples capricho de alguém que se sente prejudicado por algo, qualquer um de nós pode retaliar seu vizinho, um adversário, perseguir alguém e que não teremos a quem pedir socorro. Esta que é a questão, o futuro da sociedade brasileira.
ON - O senhor comentou sobre a importância das delimitações das esferas de poder, cada uma respeitando as atribuições e limites da outra. O juiz Sérgio Moro vem sendo duramente criticado em razão de suas decisões na Lava Jato, justamente por desrespeitar estes limites.
Luiz Moreira Gomes Júnior - As democracias constitucionais se estabeleceram de modo que as tarefas e as perspectivas do estado sofram controles por si mesmas. O Ministério Público controla a polícia, as ações do Ministério Público são submetidas ao Judiciário, que por sua vez, uma corte, um grupo de pessoas, controla decisões de um grupo. A lógica é que você tenha o bem comum. Para isso, o Estado precisa ter suas ações fiscalizadas. Qual é a discussão com este juiz de Curitiba que pretendeu estabelecer uma jurisdição nacional. Primeiro, ele age como juiz ou como policial? Ele investiga? Nesta jurisdição de Curitiba há uma distinção nas atuações da Polícia Federal com o Ministério Público Federal, deste Ministério com o Judiciário, ou eles todos compõem a mesma força-tarefa em que as questões, sobre o que fazer e quem prender, o que decretar, são todas combinadas previamente? Parece haver uma confusão proposital entre estas três esferas.
A segunda questão é a relação da jurisdição de Curitiba com os órgãos de imprensa. Nós temos uma série de vazamentos, que comumente são conhecidos antes pelos meios de comunicação. Em geral, os advogados não têm acesso ao que está sendo produzido, mas a imprensa tem. Há notícias de grampos, de escutas ambientais que são postas pela própria PF e nós não tivemos até o presente momento. Como isso ocorreu? se ocorreu, quais foram as medidas tomadas para verificar se de fato houve alguma ilegalidade? Qual é a nossa discussão. Uma sociedade como a brasileira, tão grande, tão diversa e complexa, não pode mais se organizar a partir de dados não institucionais. O que é certo para uma pessoa pode ser errado para outra. Nesse conflito de normatividade a moralidade assume um papel fragmentado. A moral de um grupo não serve para a moral de outro. Se não há uma moralidade a reger condutas, também não há religiões a reger condutas. O católico não é regido pelas normas evangélicas e vice-versa. Quem é que resolve isso? É o direito. Em uma sociedade complexa o estabelecedor, quem vai orientar as condutas é o direito. Só que para orientar as condutas é preciso haver um cumprimento rigoroso dessas atribuições que competem cada esfera.
ON- A defesa pela legalidade é justamente para evitar esta relativização do Direito?
Luiz Moreira Gomes Júnior - O que esta marcha pela legalidade pretende hoje é dizer o seguinte: atenção cidadão e cidadã, se não são respeitados nem a intimidade da presidente da república. Se nem o mandato presidencial vale nada, o seu direito vai valer alguma coisa? Ou seja, o direito do vizinho, de não entrar em seu terreno, não jogar lixo no seu quintal, quem vai fazer valer este direito? No caso do ex-presidente Lula, a condução coercitiva dele, ou vazamento proposital para a mídia de conversas íntimas, que não diziam respeito a ninguém. Aqui não estamos falando de confessionário. Estamos dizendo o seguinte, o Estado brasileiro tem que resguardar a intimidade das pessoas, não podemos admitir que o próprio Estado, na figura de um juiz, patrocine irregularidades. Porque se ele patrocinar ilegalidades, o seu vizinho juiz pode, por exemplo, surrar seu filho. Você vai apelar para quem? É disso que se trata, de estabelecer uma rigorosa limitação aos poderes do juiz, da polícia, do MP, do prefeito e do deputado, para que saibamos o que é que compete a cada uma destas figuras.
ON – A sua palestra tem como enfoque “Democracia e constituição, memória e verdade: 52 anos depois. Que paralelo se pode estabelecer deste cenário atual com aquele que se configurou no pré-64?
Luiz Moreira Gomes Júnior - O mesmo desrespeito à vontade popular, o mesmo desapego à ordem constitucional. As eleições existem para legitimar o Estado. O Estado é um ente que não tem legitimidade, por isso que há eleições periódicas. Elas atribuem aos vencedores a tarefa de imprimir uma marca ao governo. Quando resolvemos contornar as eleições, estamos contornando a vontade do cidadão. É ele quem passa a não valer nada. Essa talvez seja uma das grandes questões que marque o estado brasileiro: o desprezo para com seus cidadãos. Como o cidadão brasileiro não vale nada nesta concepção, o resultado das urnas passa também a ser desprezível. Esta é a primeira questão, o papel que cabe a democracia, o voto na sociedade. A segunda é o desapego total, radical a uma ideia de uma constituição para regular a vida das pessoas. Neste sentido, o cenário é muito próximo. A gente vê alguém que ganha a eleição para presidente da república e o mandato desta pessoa é como se não valesse nada. É muito sério isso. Grande parte da crise econômica e política que estamos vivendo, é justamente pela inconformidade do derrotado em reconhecer o resultado das urnas.
ON- Diferentemente de 64, o momento atual tem como eixo central o combate à corrupção?
Luiz Moreira Gomes Júnior - O desrespeito à ordem jurídica também é uma forma de corrupção. O corrupto é aquele que se insurge contra uma norma. Na medida em que um juiz ou um cidadão promove uma campanha contra a ordem jurídica ele também corrompe o Estado de Direito. Não podemos admitir que o combate a qualquer causa signifique a subversão de direitos. Vivemos numa ordem jurídica, numa ordem constitucional que estabelece que as eleições são periódicas, de quatro em quatro anos. No caso presidencial só se admite interrupção deste mandato se houver crime de irresponsabilidade. Não havendo, a interrupção deste mandato se caracteriza como golpe. Neste caso do impeachment, que se inicia com um processo de vingança de um homem contra quem pesam todo tipo de acusação. O Eduardo Cunha não tem nenhuma credibilidade jurídica para se portar como presidente que pautará a interrupção de um mandato presidencial. Ele tem credibilidade zero. É alguém que tem todo tipo de acusação. A sociedade brasileira não merece ter um vice contra o qual pesam todo tipo de acusação. Não estamos falando de uma transgressão de trânsito. Estamos falando de lavagem de dinheiro. Precisamos, em primeiro lugar, respeitar a vontade do eleitor, ao cidadão brasileiro, ao direito deste cidadão se manifestar para que tenhamos confiança nas instituições.
ON – No seu entendimento, a delação premiada tem sido utilizada de maneira adequada no processo da Lava Jato?
Luiz Moreira Gomes Júnior - A delação premiada virou meio que um fetiche entre nós. Ela deveria funcionar apenas como indicativo de que há um problema a ser investigado e não como prova. O delator em geral é um criminoso. Não é alguém reto que você entregaria a guarda de seu filho a esta pessoa. Quando ele se expressa o Direito exige que apresente provas do que está dizendo, caso contrário, é fofoca ou vingança. Claro que como temos uma aliança da jurisdição de Curitiba com a mídia, tudo que é delatado passou a ser utilizado como verdade, como certeza. Os delatores são todos bandidos confessos, então tem que se manter uma certa reserva. Essa relação com a mídia transformou a delação em verdade, chafurdando a reputação de pessoas. Há muitos casos que são esquecidos. Temos que aprimorar o instituto da delação premiada para não colocá-lo a perder. A delação pode ser utilizada com propósito nobre, mas não é o que está acontecendo.
ON- Qual sua previsão em relação ao processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff ?
Luiz Moreira Gomes Júnior - O pedido de impeachment foi claramente aceito pelo presidente da Câmara como uma tentativa de vingar-se do partido da presidente da República, porque esse partido resolveu votar contrariamente a ele no Conselho de Ética. Esse é o início do processo de impeachment. Não foi feito porque havia razões jurídicas que demonstravam a existência de um crime de responsabilidade ou que a presidente da República estaria envolvida em denúncias de corrupção. Não se trata disso. O que eu espero, isto é uma expectativa minha, é que o impeachment seja arquivado já na Comissão Especial, uma vez que não há crime de responsabilidade. Se não arquivar, se trata de golpe parlamentar. O que estamos discutindo é o seguinte: para que alguém perca o mandato é necessário, absolutamente exigida a existência de crime de responsabilidade. Se não houver crime de responsabilidade o processo tem que ser arquivado. É o caso. Você pode não concordar com a presidente, achar que ela é antipática, que não deu respostas satisfatórias para a economia, achar que ela não e exímia articuladora política. Todo mundo pode achar o que quiser dela, Duas coisas, no entanto, não são suscetíveis de questionamentos: ela ganhou as eleições, é presidente eleita; a interrupção do governo dela só pode ocorrer com a existência de crime de responsabilidade. Qualquer outra interrupção se caracteriza como golpe. Neste caso, o que está em tramitação na Câmara dos Deputados é um golpe parlamentar. O fato é que contra ela não há nenhuma acusação e contra o presidente da Câmara há várias acusações. Não dá para admitirmos que uma presidente da república sofra o impeachment por uma simples vingança. Se isso ocorrer, nenhum cidadão, estará salvo de qualquer árbitro. Se nem a presidente da república está salvo de vingança, de capricho, e o seu Zé, e a dona Maria, que não têm os meios de defesa, vão apelas para quem? Se o direito é relativo para a presidente, o é para todos.