O espanto de Raul Boeira

Compositor lança segundo CD de inéditas em parceria com a esposa, Márcia Barbosa

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“Minha cidade minguando atrás de um letreiro colossal”, ou então, “pela Brasil passam muitos países, traços, matizes, inúmeros sons, hindus, muçulmanos, ateus e cristãos, não tem contramão”.

Do olhar atento, de quem costuma esquadrinhar a pé as ruas da cidade, surgiu boa parte da inspiração dos versos que estão no novo trabalho do compositor Raul Boeira, ‘cada qual com seu espanto’.O CD reúne 13 canções inéditas assinadas em parceria com a esposa, Márcia Barbosa, que faz sua estreia como compositora.

O segundo disco independente de Boeira chega oito anos após o lançamento de Raul Boeira Volume Um. A exemplo do primeiro, foi gravado no Rio de Janeiro e teve direção musical de Dudu Trentin. O CD estará disponível para a venda no final deste mês.

Raul, que completa 60 anos em outubro, justifica o intervalo de quase uma década sem compor, a partir da experiência do primeiro trabalho, onde diz ter feito uma espécie de ‘inventário’ das canções produzidas entre os anos 80 e 2007. “Eram mais de 100, mas tive dificuldade para escolher as 12 que entraram. Percebi que não tinha tantas canções de qualidade como eu imaginava. Fiquei um pouco decepcionado” revela.

Ele só esqueceu de dizer que no repertório daquele disco estão canções gravadas por vários músicos, inclusive fora do Brasil. Destaque para Clariô, parceria com Alegre Corrêa, e que está no CD Joe Zawinul 75, premiado com o Grammy 2010 como melhor álbum de jazz contemporâneo.

“Senti que, naquele momento, não teria algo interessante para dizer, então decidi parar de escrever. Neste mesmo período, conheci a Márcia. Comecei a vivenciar outras experiências. Tive um contato maior com a poesia através dela, e fui deixando o violão de lado, achando que havia pendurado as chuteiras como se diz” conta.

“O Volume Um já estava quase virando Volume Único”, como costuma brincar, quando em 2014, Márcia descobriu algumas fitas cassete, com gravações de melodias compostas ainda no anos 80 e 90. Empolgada com a qualidade do material, provocou e convenceu Boeira a escrever uma letra em parceria.

Satisfeitos com o resultado da primeira parceria, partiram para a segunda e a brincadeira foi ganhando corpo. De setembro a novembro de 2014 já somavam 17 canções prontas. Professora de literaturas de Língua Portuguesa do Programa de Pós-Graduação e do curso de letras da Universidade de Passo Fundo, antes desta experiência, Márcia havia composto apenas uma letra, posteriormente musicada por Otávio Segala, e outra  para uma melodia criada por Ricardo Pacheco, batizada de Olga, homenagem à filha do músico.

“Ficou evidente que o processo de criação de uma letra é diferente do processo de criação de um poema. No caso da primeira, já há a sugestão dada pela melodia, além de uma limitação imposta pela métrica, pelas acentuações. Um dos desafios é encontrar o tema apropriado para a atmosfera que a melodia está sugerindo. O processo é empolgante”, define.

Concluídas as composições, Márcia, de novo, convenceu Raul de que o projeto deveria ser levado adiante. No final de 2014, entraram em contato com o produtor Dudu Trentin, que já havia assinado a produção do primeiro CD.

 Em abril de 2015, o casal viajou para o Rio para gravar o violão e a voz-guia das canções. Depois deste primeiro encontro, o projeto foi sendo construído através da troca de emails. “Dudu fazia os arranjos, simulando a instrumentação no teclado e nos mandava os layouts. Ouvíamos e fazíamos algumas sugestões.  Nossa intenção era deixar os arranjos como uma espécie de moldura para as imagens retratadas nas letras, o que ele conseguiu fazer com maestria. Posso dizer que compor e gravar este disco junto com a Márcia foi o primeiro trabalho realmente importante que fiz em toda a minha vida” resume Boeira.

Em razão dos compromissos assumidos por Trentin, responsável, na época, pela produção musical do Natal Luz de Gramado, a gravação definitiva com os músicos, no estúdio Yahoo, no Rio, ocorreu somente em fevereiro deste ano. Em apenas 10 dias, o trabalho estava concluído.

O espanto de cada um

Pinçada da letra Iniciação, uma homenagem ao pai de Márcia, a expressão 'cada qual com seu espanto', dá nome ao CD por ser uma espécie de síntese da obra. “Saudamos as diferenças, a maneira que cada um tem de olhar o mundo e de se espantar com ele, e também com nossos próprios atos” argumenta a autora da letra.

Nas 13 músicas do disco, o casal retrata o espanto através de uma diversidade temática, que inclui, o  meio ambiente, na irônica Meu Rio, “olha meu rio, este sofá, eu te dou de bom grado. Pode esperar sentado a volta do peixe que o tolo matou”. A saudação da  presença de imigrantes pelas ruas da cidade em Aos que chegam “Erguem paredes, costuram tecidos, varrem as ruas, vendem ray-bans, quem sabe os seus possam vir amanhã e adeus webcam”. O olhar crítico sobre a desumanização da cidade com a poluição visual está em A Cidade Sumiu “Então, um lamento ouvi e a minha cidade ali minguando atrás de um letreiro colossal, o que sobrou do cartão postal? Virou refém do mercante imbecil”, ou o espanto com o momento da criação poética na Poema dentro da casca, “Lua branquinha agora um ovo cozido num prato azul, ali esperando servido, delirante, a língua quer tocar”.

Influência direta da MPB

Assim como no Volume Um, Boeira volta a tratar de questões sobre o fazer música no Rio Grande do Sul. Na canção Funk a contrapelo,ele se posiciona contrário a uma corrente de compositores gaúchos que defende a ideia de que o fator geográfico ‘nos impele a fazer uma música diferente da MPB clássica', e complementa. ‘Não faço parte desta corrente. Toda minha formação musical, desde criança, foi a MPB. Conheci a Bossa Nova, os festivais, tudo que aconteceu nos anos 60, muito antes das califórnias e desta 'invenção' chamada MPG (Música Popular Gaúcha). Não aceito o convite de me engajar à estética do frio', afirma.

 Os versos da letra confirmam o posicionamento do autor. ”...pra encerrar, eu vou dizer que esse frio que lhe serve nunca me vestiu, nem me apraz seu feitio, eu prefiro um funk assim macio pra cantar que eu sou do sul, mas do sul do Brasil'.

Na mesma trilha crítica, Márcia compôs Complexo de Épico II. Inspirada nas referências literárias, principalmente dos poemas ‘Hino Nacional’ de Carlos Drummond de Andrade, ‘Os Lusíadas’, de Camões, na ‘Trilogia do Gaúcho a pé ’, de Cyro Martins, e ‘Navio Negreiro’, de Castro Alves, ela tenta desmitificar a visão grandiosa que se tem do Rio Grande do Sul.

 “Outros cantem vitórias num cego tumulto. Vejo o pampa cansado de ter que engolir tanto triunfo, ele pulsa encoberto, distante dos palcos de guerra. Saturado de lendas tá pedindo uma trégua”.

A intenção, segundo a autora, foi compor um contra-épico. “Uma crítica a essa idealização que, de certa forma, nos aprisiona, encobre o que é o nosso estado. É a canção em que mais me utilizo daquilo que minha formação em literatura me proporciona” observa. A canção é dedicada a Cyro Martins, escritor gaúcho falecido em 1995, e ao historiador passo-fundense, José Ernani de Almeida.

'Poucas vezes escolhi um time tão certo como neste disco do Raul'

A gravação de 'cada qual com eu espanto' reuniu novamente os dois amigos que se conheceram nas ruas de Passo Fundo ainda nos anos 70. Período em que a cidade  começava a revelar os talentos formados na lendária roda de viola formada na 'Esquina do Perfume', na vila Cruzeiro. Natural de Marau, mas radicado no Rio de Janeiro há vários anos, Trentin, 53 anos, logo se juntou ao grupo de Alegre Corrêa, Ronaldo Saggiorato, Guinha Ramires, e o próprio Raul Boeira, para quem  chegou a dar aulas de violão. “Acho que o Raul era o único amigo  nosso que trabalhava. Com o salário, comprava muitos discos. Gravava fitas cassetes e distribuía para nós todos. Conheci os melhores guitarristas através dele. Tinha um gosto refinado, ouvia música de alto nível. Ele nos encaminhou musicalmente. Depois disso, seguiu ajudando a divulgar nosso trabalho”, revela.

Sobre a parceria no novo CD, Dudu conta, em entrevista por telefone, que, ao contrário do Volume Um, gravado de maneira fragmentada por vários instrumentistas, num processo de mais de um ano, o segundo teve uma única banda base em todo o repertório, além da participação de alguns músicos convidados. Para concepção dos arranjos, chamou dois parceiros, Eduardo Farias, considerado por ele como um dos músicos mais brilhantes da nova geração, e o experiente Marco Vasconcellos, cuja biografia inclui trabalhos ao lado de Djavan, Zizi Possi, Guinga, Banda Black Rio, Lulu Santos, Hermeto Pascoal e outros. Cada um ficou responsável pelos arranjos de quatro músicas. Além das 12, teve 'O poema dentro da casca', gravada apenas com voz e violão de Celso Fonseca.

 

         “Desta vez, Raul veio ao Rio e gravou uma voz-guia, no início do processo, o que ajudou muito. Trabalhamos de maneira livre, mas sempre respeitando as sugestões e observações feitas por ele sobre o clima de cada música. Eu mandava os layouts e ele avaliava. Foi um trabalho em equipe que manteve uma unidade no resultado final. O disco ficou com a cara musical dele, com o que ele pensou. Poucas vezes escolhi um time tão certo como neste disco do Raul”, diz Trentin.

Segundo Trentin, 'cada qual com seu espanto' segue a linha mais clássica da Música Popular Brasileira. “Os instrumentistas até brincavam no estúdio dizendo que estavam gravando música de verdade, de qualidade e sem a interferência das gravadoras ditando regras e preocupadas com a vendagem. Tem algumas que chegam a pedir para deixar a introdução das canções menor para tocar na rádio. Gravamos muito rápido, num clima amigável entre todos os envolvidos. O resultado do trabalho de estúdio foi muito satisfatório na minha opinião”, comenta.

 

Canções comentadas pelos autores 

 

1 Iniciação: Canção emotiva, uma toada de colorido regional. É a homenagem da letrista a seu pai, um inspirado contador de histórias que muito cedo despertou nela o gosto pela literatura.

2 Na pausa: Um sambinha leve e bem humorado, estilo João Donato, que celebra o tempo livre, a pausa, o devaneio, como forma de liberação do corpo, do pensamento e da linguagem. 

3 No fundo do topo: Um samba-bossa que discute o modo como as pessoas se tornam reféns da vaidade e da busca pelo sucesso a qualquer preço. Questiona a ideia de que devemos ser e parecer felizes o tempo todo. A letra foi inspirada no livro A euforia perpétua, de Pascal Bruckner.

4 Meu rio: Um samba-canção lento, irônico e nostálgico, que lamenta a poluição do Rio Passo Fundo, enquanto lembra o tempo em que o seu leito era território de peixes e crianças brincando, e não de sofás, colchões, pneus...   

5 Vamos: Uma balada funk, que descreve a nossa parceria na vida e na música.

6 Aos que chegam: É um frevo vibrante, uma saudação aos imigrantes e refugiados que chegam à cidade em busca de trabalho e de uma vida digna, colorindo as nossas ruas.

7 O poema dentro da casca: Uma bossa, de violão e voz, que procura traduzir o momento da criação poética, o clima de suspense e de mistério que antecede o surgimento do poema. Celso Fonseca tocou violão e cantou alguns versos da canção.

8 VENTOS: Uma valsa jazz que pinta, com um olhar poético, às vezes beirando o nonsense, as múltiplas imagens sugeridas pelo vento. Versos soltos, divagações, memórias.

9 A cidade sumiu: Um samba jazz que denuncia a lógica mercantilista como fator de desumanização das cidades, verdadeiras reféns da poluição visual descontrolada.

10 Meio aéreo: Uma balada funk  que celebra o fazer música como forma de seguir brincando ao longo da vida.

11 Complexo de épico II: É uma falsa milonga que propõe o abandono da visão idealizada (épica) do passado do RS. Aqui, o arranjo é peça-chave, pois complementa o texto ao criar uma sonoridade marcial (clarins e tambores), mas sempre atravessada pelo tom melancólico que relativiza e questiona a versão grandiosa dos fatos.

12 Povaréu: Um maracatu festivo, meio baiano e meio caipira, com farta percussão, que elogia a pluralidade e as diferenças, ao mesmo tempo em que denuncia as intolerâncias e os preconceitos que impedem a convivência harmônica entre as gentes.

13 Funk a contrapelo: Funk dançante que contraria uma ideia existente no RS: a de que um certo determinismo geográfico pode ser transferido para o âmbito cultural, a fim de justificar uma espécie de separatismo/isolamento da música feita aqui em relação à MPB.  

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