Na casa cor-de-rosa e de aparência antiga da Rua Morom, que parece destoar de todo o caos do centro da cidade, pessoas que talvez nunca tenham se visto antes, nas noites de algumas quartas-feiras se aconchegam em um canto do espaço coletivo – iluminado apenas parcialmente, para deixar o ar ainda mais intimista. Sentado em um pufe, em um banco, no chão ou apoiado contra a parede, não importa. O conforto chega pelos ouvidos e pelo ambiente poético, onde até as paredes parecem transpirar arte e se inclinar para ouvir tudo mais de perto.
Na contramão das obrigações individuais, os encontros quinzenais da “Poética – Quarta da Afetividade” trazem (como o próprio nome declara) um respiro poético no meio da semana, para qualquer um que esteja espantado de existir. A Poética é o casamento entre literatura, música e demais manifestações artísticas, unidas em uma roda de poesia para sentir a força da palavra, seja ela falada ou escrita, interpretada ou autoral. É a democratização de espaços da cidade. É o desacelerar dos passos e o exercitar dos pensamentos, engolidos pela rotina. É a percepção da cidade como território literário, com potencial educativo para criar uma rede de afetos e de encontros, para estimular a cena independente e cultural. A definição é da jornalista e uma das organizadoras do projeto, Afani Baruffi, mas palavras parecidas brotariam de qualquer um dos participantes que se reúnem a cada quinze dias, sempre às 20h30min das quartas-feiras, na Casa de Cultura Vaca Profana, e saem de lá cada vez mais apaixonados pela poesia.
A ideia de oferecer estes encontros, abertos ao público e que exigem como ingresso apenas uma contribuição espontânea – você paga o que se sentir confortável em pagar –, onde a sensibilidade da conversa permite adquirir um novo olhar sobre diferentes assuntos, surgiu há quase três anos, da mente do jornalista e historiador Tau Golin, mas não deu seus primeiros passos sozinha. A Poética foi cuidada, como se fosse uma criança, pelo doutor em Literatura Miguel Rettenmaier. E, sabendo da importância de oferecer qualidade no início de vida, antes de lançar esta criança aos desafios impostos pelo tempo, ele soube também que o sucesso da Poética apenas seria possível com ajuda de outros apaixonados pela arte. Contou com a ajuda no processo de criação da doutora em História Jacqueline Ahlert. Hoje, além de Tau, Miguel e Jacqueline, coordenam os encontros Afani Baruffi e André Agostini. “A Poética é uma criança linda demais, que para além de titulações, precisa de pessoas sensíveis, dispostas e amorosas, para estimular o seu desenvolvimento natural”, define Afani, que se vê como uma das muitas filhas da Poética.
Quando Tau começou a movimentar a ideia, os demais coordenadores precisaram fazer um mapeamento informal para identificar um espaço que disponibilizasse uma acústica agradável, um conforto mínimo e que acolhesse a comunidade, sem custos. A princípio, os encontros ocorreram no Backstage Pub, mas eles ainda sentiam a ausência de um ambiente com maior poder para viver e ouvir as manifestações artísticas. Um lugar que, até a abertura da Casa de Cultura Vaca Profana, em setembro de 2015, inexistia em Passo Fundo e em tantas outras cidades. Quando a Vaca Profana foi criada, pensando em abrigar, circular e fazer fluir a cultura de Passo Fundo e região, por meio de um espaço público de iniciativa de um coletivo jovem, formado por estudantes e artistas, a combinação entre a Poética e a Vaca foi instantânea. Desde então, é nela que os encontros ocorrem.
Quanto às discussões acerca das palavras, promovidas na Poética, os coordenadores explicam que os temas emergem da atualidade e de assuntos universais, como o amor, a solidão, a felicidade, o erotismo, a memória, as epifanias... O último encontro da Poética deste ano, na quarta-feira (14), por exemplo, trazia como tema a “poesia em canção: as sonoridades das palavras”, aproveitando a oportunidade para prestar tributo a Bob Dylan, letrista, poeta e músico, reconhecido com o Nobel de Literatura de 2016. Independente da temática, os encontros querem celebrar a vida e contam com o apoio do público, que presta o mais respeitoso silêncio enquanto aprecia as palavras de quem, por um momento, se empodera do microfone ou do violão, em frente a todo o público reunido na Casa. Isso porque, como Afani menciona, citando o autor gaúcho Caio Fernando Abreu, a poesia não é adiável. E nem a vida.
Em 2017, os coordenadores pretendem continuar amando muito o projeto. Mesmo que os encontros não estivessem gerando um número significativo de interessados (e estão), Afani diz que na Poética não existe resultado bom ou ruim. Aliás, não existe resultado. “O meu artista maior é um uruguaio chamado Jorge Drexler, e ele canta que é preciso ‘Amar la trama más que al desenlace’, quer dizer amar o percurso, laçar os fios, para além do resultado. Diante desse cenário brasileiro tristíssimo, na minha opinião, precisamos ouvir a grama crescer lá fora, precisamos viver ainda mais a nossa cidade, conviver com a arte. O ser humano é muito perfectível. Acredito que seremos mais humanos se formos unânimes naquilo que valha a pena”.
Vaca Profana
Não só os ideais e as paixões eram compatíveis, como também a Poética – e tantos outros eventos independentes – apareceu como forma de manter a Vaca Profana, que conta apenas com a contribuição espontânea dos frequentadores destes eventos e com parcerias de outros espaços. “Cada vez mais temos feito parcerias nesse sentido. A gente não faz nada sozinhos. Tudo é melhor quando construído coletivamente”, explica uma das organizadoras da Casa, Mariah Teixeira. O espaço ajudou a alavancar a cena cultural de Passo Fundo, motivou a criação de novos coletivos, grupos e espaços que também têm papel importante para um crescimento na produção de cultura. Deu o empurrãozinho que faltava para que mais e mais encontros saíssem do papel.