“Ando pós-modernamente apaixonado pela nova geladeira, primeira escrava branca que comprei, veio e fez a revolução”, assim começa a Balada de Madame Frigidaire, do cantor e compositor Belchior. Embora a utilização do nome represente admiração e sirva como singela homenagem de quem admira até hoje a arte, o jeito de viver, escrever e simplesmente ser de Belchior, as semelhanças logo se findam. Diferente da senhora geladeira retratada na canção, fria e estática, o grupo independente de teatro Madame Frigidaire traz calor e movimento à cena cultural de Passo Fundo. Usa da interpretação teatral para aquecer e acolher os pensamentos inquietos de quem os assiste.
Se fosse pessoa, Madame Frigidaire seria uma senhora de atitude, que acredita no potencial do teatro como um espaço para criar novos jogos de linguagem, novas realidades, e que deixa marcas indeléveis em quem em algum momento viveu a experiência potente de pisar em um palco. Essas marcas fizeram o professor de teatro Lucas Quoos sentir a necessidade de continuar em contato com a arte, mesmo depois de deixar o grupo de teatro do qual fazia parte, em Soledade, e se dedicar a estudar Filosofia. Achava nas atividades universitárias uma maneira de associar a licenciatura com o universo teatral. Em uma dessas associações, Lucas realizou uma oficina, onde conheceu outras duas jovens, Emily Barbosa e Manuela Zamprogna, que também ansiavam por viver a experiência do teatro para além de suas obrigações individuais.
No final do encontro, a ideia de criar um grupo foi proposta e adotada pelos três. “Madame Frigidaire, literalmente, surgiu de um ‘se tu criar um grupo de teatro, a gente pilha’. Vi ali a chance de fazer não apenas teatro, mas teatro a partir do que eu acreditava que deveria ser. Então larguei tudo em Soledade e me mudei para Passo Fundo, em fevereiro de 2016”, conta Lucas. Assim que apresentaram a ideia a mais pessoas, a Casa de Cultura Vaca Profana abraçou a proposta e cedeu a eles um espaço para ensaiar. A partir daí, mais pessoas entraram no grupo. A maioria delas faz parte do Madame Frigidaire até hoje, outras entraram mais tarde, e desde então, sem falhar, elas têm se reunido todas as semanas.
Antes de entrar no grupo, a maioria dos integrantes jamais havia tido uma experiência profunda com o trabalho do ator e, por isso, passaram os primeiros meses estudando, discutindo, pesquisando e fazendo exercícios. Todo o trabalho sempre se manteve direcionado com bases nas discussões dos membros sobre qual é o dever do teatro experimental e, mesmo quando há um texto a ser ensaiado, eles não deixam de lado os exercícios teatrais semanais. “Temos discutido também a história do teatro, o que não mudou e o que precisa ser mudado. A tradição teatral é importante e jamais ignoraríamos esse edifício construído desde que a humanidade existe, até porque é preciso estar lá em cima para poder olhar mais longe do que os nossos mestres o fizeram”.
Jeito diferente de fazer teatro
Hoje o grupo entende que foram capazes de avançar significativamente com relação aos conhecimentos que tinham no passado e têm a consciência de usar o que sabem para que o teatro possa ocupar um patamar importante na sociedade. Não somente como um espaço para reflexão, por já haverem muitos meios para isto. Não como um simples entretenimento, pelo mesmo motivo. Mas, sim, como um espaço de criação. Lucas conta que, em Hamlet, Shakespeare diz que o dever do teatro é reproduzir com fidelidade a natureza e o homem. Ele, no entanto, acredita que esse dever precisa ser superado, pois o teatro não precisa mais reproduzir a realidade enquanto existem outros meios para isso. “Os estudiosos dizem que Shakespeare inventou o homem. O nosso dever agora é reinventá-lo. Não apenas reproduzir a realidade, mas criar novas realidades no palco. O artista precisa investigar, experimentar e criar, acima de tudo”, expõe.
Também acredita que não há outro jeito de fazer teatro, senão de um jeito diferente. Em suas peças, a Madame convida o público a criar junto com os atores. Constroem o ambiente na penumbra, para que o público não seja passivo. Diminuem o número dos movimentos por partes dos atores, para que, quando eles se movam, o ato carregue um significado maior. Usam, como no caso da peça “Cenas Curtas”, textos de autores independentes da própria cidade. Autores de gaveta, que escrevem sem o interesse de serem lidos, mesmo que tenham muito a dizer. Escrevem porque precisam, mesmo que não tenham nada a dizer.
Recentemente, o grupo conseguiu outro local para realizar suas atividades, o Rito – Espaço Coletivo, mas ainda necessita do retorno do público para continuar. Felizmente, o “Cenas Curtas” tem sido bem aceito, com sessões lotadas, e em 2017, além de novas edições deste projeto, o Madame Frigidaire pretende continuar criando cada vez mais e com mais intensidade.