Na mitologia grega, uma das histórias que se destaca é a de Ícaro – mais precisamente, a história do voo e, posteriormente, a queda que resultou em sua morte. O mito conta o episódio em que Dédalo, preso junto com o filho Ícaro no labirinto de Creta, constrói asas para que ambos sejam capazes de fugir da prisão. Quando Dédalo entrega as asas a Ícaro, pede que o jovem não voe alto demais, para que o calor do sol não derreta a cera e faça com que as asas se desmanchem. No entanto, tão fascinado com a possibilidade de voar, Ícaro aproxima-se tanto do sol durante a tentativa de fuga que a cera derrete e o jovem cai, o que culmina em sua morte.
Assim como Ícaro, foi em uma tentativa de alçar voo, enquanto treinava acrobacias aéreas em tecido, que o ator Luciano Mallmann sofreu a queda responsável por lesionar sua medula e deixá-lo em cadeira de rodas, no ano de 2004. O acidente aconteceu no Rio de Janeiro, onde o gaúcho morava na época e investia na carreira de ator. Lá, descobriu também a paixão pela dança e a acrobacia aérea. Paixões que deixou de lado por um longo período após a queda. “Voltei a Porto Alegre quando me acidentei. Minha família estava perto de mim para me dar todo o apoio nessa hora, mas eu não queria trabalhar em mais nada como ator, decidi que voltaria a trabalhar com publicidade. Eu me recusava a trabalhar como ator porque antes eu trabalhava com todas as condições, e agora estava em uma condição limitada”, conta.
O que difere a história de Luciano da mitologia, é que a dele não terminou na queda, apenas lançou-o a um recomeço. Enquanto exercia a profissão de publicitário, em 2016, ele decidiu trabalhar como voluntário de recreação na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD). “A troca que eu tinha com as crianças de lá foi me deixando muito feliz e com uma vontade muito grande de voltar a fazer alguma coisa enquanto artista. Aí eu comecei a escrever alguns textos, já pensando em fazer algo voltado para o teatro, e tudo que eu escrevia tinha o formato de depoimentos de pessoas que estão na mesma condição que eu – que sofreram uma lesão medular e estão de cadeira de rodas”.
Foi neste processo de redescobrimento como artista que uma peça, escrita e interpretada unicamente pelo próprio Luciano, começou a ser montada. O título demorou a ser escolhido, mas não poderia ser outro: “Ícaro”, um monólogo intimista, dirigido por Liana Venturella. No espetáculo, Luciano interpreta diversos personagens que dialogam com a plateia e expõem momentos da vida privada que vão além de uma cadeira de rodas, embora todos tenham a deficiência física como algo em comum. “São depoimentos que tratam de temas universais, questões que são comuns a todo mundo. A gente fala sobre relacionamentos amorosos, relações entre pais e filhos, gravidez, superação, abandono, suicídio...”.
É essa abordagem que contribui para que a plateia se identifique com os personagens retratados na peça, independente da condição física deles. Ao mesmo tempo, aproxima o público de maneira sútil aos tabus e preconceitos relacionados à deficiência. “Essa identificação eu acredito que esteja contribuindo para que a deficiência seja vista pelas pessoas, cada vez mais, como uma coisa normal. Não adianta nada, de acordo com os princípios da inclusão, as pessoas com deficiência estarem vivendo no mundo como todo mundo, e serem lidas na escola e nos espaços de diversão, se o olhar das pessoas sempre for de estranheza e de preconceito. Então eu acho que a militância é importante sim – essa coisa de construir rampas e ter acessibilidade, é uma coisa que já devia estar automatizada na sociedade e infelizmente não está ainda – mas a peça vai por outro lado. É uma inclusão de outra forma. É no sentido da visão que as pessoas têm sobre as pessoas com cadeiras de roda”, o ator elucida.
Espetáculo inédito em Passo Fundo
Pela primeira vez em Passo Fundo, a apresentação da peça “Ícaro” acontece no Teatro do Sesc Passo Fundo neste sábado (12), a partir das 20h. Os ingressos custam entre R$ 12 e R$ 30 e podem ser adquiridos na Secretaria da instituição. É a primeira vez, também, que um cadeirante atua sozinho em palco no Sesc, segundo a agente de Cultura e Lazer da unidade local, Andressa Pagnussat de Quadros. “Nós temos acessibilidade para o profissional e também para a plateia, mas, mesmo assim, algumas questões a gente precisou revisar, para garantir que ele teria a possibilidade de uma acessibilidade melhor ao camarim, por exemplo. Para nós, também é diferente. A gente nunca tinha contratado alguém que fosse cadeirante, então nossa equipe teve um olhar diferente para receber ele, mais estrutural e de planejamento”.