Márcia Barbosa lança primeira obra no gênero poesia

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“Que língua é essa que tem tanta fome e que vai tirando (ou repondo um a um) os espinhos da sua própria garganta? Rouca, sublime e tocante na doçura do mais íntimo foyer, ela canta à beira de um abismo, de uma perda - em sintonia. Viageira dos seus pertences (trechos de infância, lembranças de lagartixa, roubos de memória, entreveros de fronteira), ela deambula num tempo de frutos efêmeros, de estações insones, quando um nome nos espia de algum canto. É caracol com casa e tudo, recolhida e expansiva: própria e dupla. […] Essa, uma das línguas de fogo de Márcia Barbosa, que é pura, puríssima! Não há sequer um grão de poeira na sua água de fonte, primeira, inaugural.”

O fragmento acima, escrito por Maria Lúcia Dal Farra, poeta (vencedora do Prêmio Jabuti de Poesia em 2012) e crítica literária reconhecida no Brasil e no exterior, é parte da apresentação do primeiro livro de poesia de Márcia Barbosa. Em Duas Fomes, que está sendo lançado pela Gradiva Editorial (Rio de Janeiro), a professora de Literatura da Universidade de Passo Fundo reúne 55 poemas. Alguns deles homenageando pessoas que, direta ou indiretamente, inspiraram a autora. Entre elas estão Elza Soares, Arthur Bispo do Rosário e as passo-fundenses Maria Lucina Busato Bueno (artista plástica) e Heloísa Goelzer de Almeida (Comitê da Cidadania contra a Fome e a Miséria).
Crítica literária com diversos ensaios publicados, Márcia também compôs várias letras para as canções do CD Cada qual com seu espanto, lançado em maio do ano passado, em parceria com o compositor Raul Boeira. O lançamento de Duas Fomes será no dia 24 de agosto, quinta-feira. A sessão de autógrafos acontece no 2º andar do Sesc de Passo Fundo, das 18h30min às 20h30min. O preço do livro é de R$ 20. Confira a entrevista com a autora.

 

Como foram seus primeiros contatos com a poesia?

Márcia Barbosa - Meu pai gostava de dizer poemas e também lia alguns em voz alta para mim. Então, antes de aprender ler, eu ouvia poemas. Quando passei a ler, tomei contato, primeiro, com os sonetos de Camões, com os poemas de Cecília Meireles, Manuel Bandeira e com Augusto dos Anjos, que não era uma leitura considerada apropriada para crianças, mas que me atraía devido ao ritmo. Logo depois, vieram Castro Alves, Drummond e outros.

Depois veio o estudo da poesia?

Márcia Barbosa - Sim, a pesquisa sobre poesia tem sido uma constante na minha vida. Um reflexo disso é o fato de que todos os meus trabalhos de conclusão, da graduação ao pós-doutorado, foram análises de obras de poetas brasileiros ou portugueses. Além disso, desde que me tornei professora, há mais de 20 anos, abordo a poesia em sala de aula.

E a escrita de poemas como começou?

Márcia Barbosa - Eu escrevo poemas há muito tempo, mas essa era para mim uma atividade esporádica. Eu não tinha um projeto de me tornar poeta e, embora gostasse de alguns poemas que havia feito, os mais antigos ainda da década de 90, achava que ainda não tinha encontrado uma forma de falar que fosse minha e que não tinha algo para dizer que fosse importante e que valesse a pena ser publicado.

Em que momento surgiu a decisão de escrever o livro?

Márcia Barbosa - Tudo foi acontecendo de forma gradativa. Primeiro, fui provocada pela leitura do romance A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi. Não era um “monstro sagrado” da literatura; era uma mulher quase da minha idade, de quem fui muito próxima na época da faculdade, e escrevendo muito bem. Ali me senti capaz de fazer poesia e percebi que eu tinha uma experiência e uma voz próprias; não precisava ser um Fernando Pessoa. Isso foi em 2014. No mesmo ano, fiz várias letras para as canções do CD Cada qual com seu espanto, de Raul Boeira, o que aprofundou essa sensação. Paralelamente, houve um longo processo de amadurecimento pessoal e de autoconhecimento.

Foi aí que começou a escrever o livro Duas fomes?

Márcia Barbosa - Não. Até aí o ato de escrever existia em potência; eu desejava e já sabia que podia. Mas só comecei a fazer os poemas de Duas fomes no final de 2015, logo depois da morte de minha mãe. Em menos de quatro meses, o livro estava pronto. Fazer poesia, naquele momento, se tornou para mim uma imposição, algo que eu não podia adiar e do qual não podia fugir. Foi uma espécie de inventário, uma forma de sobrevivência, umanecessidade de me posicionar diante das mazelas sociais e uma busca de transcendência, de reinvenção do mundo e de mim mesma por meio da arte.

Como nascem os poemas?

Márcia Barbosa - Fazer poemas é algo que não depende muito da minha vontade. O que eu posso fazer é ficar atenta. Tudo pode ser matéria-prima: às vezes, é uma fotografia, uma lembrança, uma frase ouvida no ônibus, uma notícia lida no jornal, uma paisagem, uma história que me contam, um livro, um filme, uma música, um sonho e até a leitura de uma tese. Primeiro vem uma sensação quase física, eu diria, uma imagem e/ou um ritmo. Aí eu escrevo todo o poema de uma vez. Depois, revejo o que escrevi; corto bastante; acrescento alguma coisa; substituo palavras e, eventualmente, mudo algum verso de lugar.

O que são as duas fomes a que o título se refere?

Márcia Barbosa - São as fomes do corpo e da alma: a falta de alimento e a vontade de aplacá-la; a compaixão, o desejo e o amor; a ânsia por justiça; a busca do prazer estético...

Que temáticas você aborda no livro?

Márcia Barbosa - Os poemas abordam assuntos variados: memória e identidade; infância; envelhecimento; amor; morte; o fazer poético; a diversidade linguística e cultural, além de temáticas sociais, tais como as desigualdades, a situação dos refugiados, a discriminação étnico-racial e de gênero, o abuso sexual de crianças, o narcisismo...

No livro se destaca o diálogo com outros escritores e com outras artes

Márcia Barbosa - Sim, esse diálogo ocorre por meio de referências diretas a outros escritores ou de alusões, seja na retomada da sua dicção e/ou das temáticas e atmosferas que caracterizam a escrita desses autores (Camões, Simões Lopes Neto, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Castro Alves, Machado de Assis, Drummond, Fernando Pessoa...). E há um diálogo com as outras artes, que resulta da minha relação antiga e constante com a música, o cinema, a pintura, entre outras.

Quais são suas influências, poetas preferidos?

Márcia Barbosa - Os meus poetas preferidos, aqueles que eu gosto de ler com frequência e que sempre têm algo a me dizer, são também, pelo menos eu acho, os que acabaram me influenciando: Drummond, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Adélia Prado, Sophia de Mello B. Andresen, Fernando Pessoa, Camões, Jorge de Senna...

Você participou do CD Cada qual com seus espanto, compondo várias letras. Qual a diferença entre a experiência recente de compor letra de música e o processo de fazer poesia?

Márcia Barbosa - O que eu fiz, no caso do CD Cada qual com seu espanto, de Raul Boeira, foi criar letras para melodias previamente compostas por ele. O processo de criação da letra ficou condicionado, então, à métrica da melodia, aos seus acentos rítmicos, ao número de versos e de estrofes. Para escolher as temáticas para as letras, também me deixei guiar pelo clima e atmosfera sugeridos pela melodia. Fazer poesia já é diferente. Não existe qualquer medida ou limites prévios que eu precise respeitar no que diz respeito à forma. As decisões quanto a isso vão sendo tomadas no próprio ato de escrever. Além disso, no poema, a temática não depende de uma melodia preexistente. Para mim, o que há de semelhante entre fazer uma letra e fazer um poema é o fato de que eu escrevo em qualquer lugar, numa sala de espera, fila de banco, dentro do ônibus...

O que você diria a alguém que deseja fazer poemas?

Márcia Barbosa - Os caminhos são vários. O que eu acho que contribuiu para que eu viesse a fazer poesia foi: ler textos literários de épocas, estilos e gêneros diversos, e também jornais, histórias em quadrinhos; aprender outros idiomas, o que promove uma experiência de descentramento; conhecer outras artes; observar o mundo em que eu vivo, convivendo com diferentes tipos de pessoas e ouvindo o que elas têm a dizer; mergulhar na precariedade da condição humana.

Os estudantes e as pessoas em geral se interessam por poesia? Qual o papel da poesia hoje?

Márcia Barbosa - Sim. As pessoas têm mais familiaridade com os contos, novelas e romances, e é isso que buscam por sua própria iniciativa. Pelos depoimentos de meus alunos e amigos, constato que poucos leram poesia na escola. Mas, quando apresentamos às pessoas um poema, mais do que nunca, se deparam com a “palavra fora do lugar”, e o sentimento que experimentam é de surpresa, de satisfação, de júbilo, de que aquilo lhes é necessário. Então, a poesia desacomoda, promove a reflexão, desenvolve a sensibilidade e, por isso, pode exercer um papel humanizador. Precisamos aproximar as pessoas da poesia.

 

Um haikai desabusado
Para Elza Soares

– De onde você vem?
– Do mesmo planeta seu.
– De qual planeta?
– Do planeta fome.
Era um programa de calouros
não fui eu que liguei o rádio
mas esse haikai interceptou meu caminho.
O corte levou o lóbulo de minha orelha esquerda
a última frase me deixou uma cicatriz que não sei bem onde dói.
Sangra quando a vejo
treze anos
sozinha na arena
os olhos rasgados
a bainha da saia improvisada com alfinetes
porque ela queria cantar...
e o riso da plateia antecipando o sacrifício.
Sangra quando provo
o espinho que ela retirou da pata do animal
e engoliu
a voz ferida arranhando a turba.
Sangra quando ouço
a réplica inconteste
“do planeta fome”.
Sem l’esprit d’escalier eu ia dizer
mas passo a navalha antes que ela me corrija:
sem faísca atrasada.
De onde terá vindo essa lembrança?
pergunto e vou afiando a voz
talvez uma questão de sintonia.
Sangra quando penso nela
e nas duas fomes que trazia.

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