Quando o assunto é literatura, é provável que você já tenha ouvido falar de George Eliot ou Curer Bell, autores de dois dos maiores romances da história ocidental: Middlemarch e Jane Eyre, respectivamente. Ou deveríamos dizer autoras (no feminino)? É que, na verdade, estes eram pseudônimos das escritoras Mary Ann Evans e Charlotte Brontë, que decidiram adotar nomes masculinos nas primeiras publicações para que seus trabalhos fossem levados a sério. E se precisasse listar autores clássicos da literatura mundial, quantos dos nomes que viriam à sua mente seriam de mulheres?
Essas constatações dizem muito sobre o papel da mulher na sociedade. Não significa que mulheres não escrevem profissionalmente - embora seja um fato que a alfabetização de mulheres em séculos passados sustentava-se em condições precárias quando comparada à alfabetização de homens no mesmo período, o que contribuiu para a proporção menor de publicações femininas. No entanto, mesmo que o conjunto de fatores sociais e históricos possa ter resultado neste cenário negativo, mulheres sempre escreveram grandes obras. Conhecer poucas produções assinadas por elas, mesmo atualmente, é um sintoma de que ainda há muito caminho a ser trilhado para que a figura feminina receba a devida atenção.
Para seguir avançando na luta contra a desigualdade, a primeira editora da região voltada exclusivamente à escrita feminina já começa a tomar forma e tem lançamento marcado para esta sexta-feira (22). Com sede em Passo Fundo, a Editora Desdêmona aparece com a proposta de publicar livros de ficção e poesia, assim como de não-ficção nas áreas de Artes e Ciências Humanas, escritos por mulheres. O nome não deve lhe ser estranho: a inspiração para alcunhar a editora é a famosa personagem da tragédia “Otelo, o mouro de Veneza”, de Shakespeare. Na história, Desdêmona morre asfixiada pelo próprio marido, Otelo, que fantasia estar sendo traído por ela. “Nossa Desdêmona tem a chance de respirar e de se fazer escutada”, explica a responsável pela iniciativa, a escritora passo-fundense Luciana Lhullier.
De acordo com ela, a proposta surgiu da vontade de criar ou retomar espaços igualitários e de direito. “Pouca gente se dá conta do quanto o espaço da escrita e da publicação é um espaço de poder – o poder de falar com legitimidade. A ideia é, então, incentivar e legitimar a voz e a visão de mundo das mulheres na escrita”, expõe. Como Lhullier esclarece, o foco da editora é exclusivamente no texto feminino, produzido por mulheres, mas pode haver alguma exceção. “Veja bem que estamos falando de gênero, não de sexo. E aqui vai uma provocação: se algum homem, que se considere dentro do gênero masculino, conseguir enxergar e sentir o mundo como uma mulher, e produzir um texto genuinamente feminino, temos duas ótimas notícias a dar a ele. Um: ele é, em parte, uma mulher. Dois: publicaremos”.
Antes mesmo da inauguração, a Desdêmona já tem bons planos para este ano. Além dos projetos de algumas autoras que já procuraram a equipe da editora, uma coletânea de contos, crônicas e poemas intitulada “As Coisas que as Mulheres Escrevem” será lançada em breve.
Experiência própria
Apenas uma escritora mulher é capaz de compreender genuinamente o que é ser, justamente, escritora e mulher em um mercado predominantemente masculino. Autora dos livros “A Casa de Dentro e Outras Loucuras” e “No Coração da Floresta”, Lhullier compartilha que já sentiu ter seu trabalho subestimado apenas por ser mulher, especialmente no sentido de muitas pessoas acharem que escreve por entretenimento, como um passatempo. “Isso acontece com muitas mulheres que escrevem, por sinal. Na verdade, escrevo porque preciso pensar e sentir o mundo. Tanto o meu mundo interno, como o que me rodeia. A escrita é um meio de expressão que compõe o que, para mim, é ser humana e estar no mundo e é também um grande elemento de conexão com outras pessoas. Há uma liberdade em comum que aparece no texto”, destaca.
Na opinião da escritora e responsável pela editora Desdêmona, o mercado permanece sendo desigual e favorecendo a figura masculina, em parte, porque as editoras, com frequência e de olho no mercado, privilegiam a escrita enquadrada nas tradições bem estabelecidas: a escrita das grandes façanhas e conquistas do mundo ou então a escrita das angústias do anti-herói, com grandes dificuldades de funcionar em um mundo dentro de vínculos emocionais mais significativos, sem saber o que fazer com os próprios sentimentos, e eternamente dependente de um olhar que o engrandeça. “Essas escritas têm traços fortemente masculinos. Além disso, por ser um espaço de poder, a escrita se encontra marcada dentro de um sistema de organização social, o qual sabemos funciona em torno de regras criadas pelos homens, principalmente as regras de trabalho. É muito difícil para muitas mulheres, por conta das inúmeras atividades que desempenham sozinhas, sem nenhuma colaboração, publicar dentro dos mesmos moldes feitos para homens que possuem tempo, espaço e meios dedicados à criação. Virginia Woolf já falava disso em ‘Um Teto Todo Seu’”.
Bate-papo e lançamento da editora
Para marcar o lançamento da Editora Desdêmona, acontece nesta sexta-feira (22) “As coisas que as mulheres escrevem”, um evento com muita música e literatura. Na oportunidade, a autora Luciana Lhullier, junto com a escritora e professora Piti Ochoa Ughini, a doutoranda em Letras Raquel Cesar da Silva e a autora Sueli Gehlen Frosi, vão debater quais são as mulheres escritoras que as inspiram no mundo dos textos e palavras. Para quem gosta de música, a noite conta também com a apresentação da cantora Roberta Radalle e dos músicos Augusto Dossa e Alcemar Pitágoras. A atividade acontece no Teatro Municipal Múcio de Castro (Avenida Brasil Oeste, 792), a partir das 19h30min. O evento é gratuito e aberto ao público, mas é necessário retirar previamente o convite na Biblioteca Municipal de Passo Fundo ou na Delta Livraria & Papelaria.