Videolocadoras resistem à onda do streaming

Com menor fluxo de clientes, locadoras têm buscado alternativas para continuar no mercado

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Entre as prateleiras lotadas com mais de 11 mil títulos, bancos e poltronas espalhados pelo ambiente parecem convidar os clientes para que se sentem e escolham com comodidade e livre de pressa qual filme levar para casa. Na hora da decisão, o velho bate-papo com os funcionários serve de ajuda para trocar indicações e descobrir qual obra vale mais a pena. Embora a era das locadoras esteja cada vez mais próxima do fim, alguns espaços resistem ao tempo e continuam atraindo clientes fiéis em Passo Fundo, especialmente os cinéfilos amantes da moda antiga, como é o caso da Zilvia Videolocadora. Para continuar no mercado, a solução tem sido diversificar os serviços oferecidos e buscar segmentos que ainda não ganharam força na internet, como filmes antigos e pouco comerciais.

Proprietária da Zilvia, Justina Nothem conta que o diferencial da videolocadora, e um dos fatores responsáveis por manter as portas do estabelecimento abertas, é o acervo de filmes clássicos e de arte, difíceis de encontrar em serviços de streaming ou sites de download, por exemplo. “Até mesmo em outras locadoras é difícil de achar filmes raridades, porque as produtoras logo pararam de produzir. Não havia muitas vendas, o grande público deixou de se interessar em locar um clássico. Como o meu marido André sempre gostou, ele ia comprando e assim construiu a coleção”, explica. Ainda visando diminuir as despesas e aumentar a renda, Justina já considera mudar o acervo para um espaço menor e tem vendido alguns títulos que antes eram apenas locados. “Também estamos tentando diversificar os produtos. Estou vendendo cosméticos e outros segmentos”.

O comportamento se repete em outras videolocadoras do município - em muitos casos, os serviços ofertados em um espaço compartilhado não integram o mesmo segmento. Afinal, a queda no número de locações é um mal que afeta todo o ramo. Na Mega Vídeo Locadora, em funcionamento no bairro Vera Cruz há 26 anos e com quase seis mil títulos no catálogo, a proprietária Luciane Wendland estima que nos últimos três anos o número de cadastros ativos tenha caído pela metade. Apesar de ainda conseguir pagar todas as contas com os lucros da videolocadora, ela confessa que já considerou fechar as portas. O que dá uma força na renda é oferecer mais de um serviço na mesma sala comercial. Neste caso, uma lan house. “Eu noto que quem mais frequenta aqui é quem não tem acesso à internet e as pessoas mais idosas. Felizmente, mesmo que tenha diminuído muito o movimento, nós ainda temos bastante clientes. Como é uma locadora antiga, o pessoal sabe que ela existe há muitos anos no mesmo lugar e continua procurando”, diz.

Clientela fiel

Os esforços por parte de microempresários para manter as videolocadoras funcionando, segundo a proprietária da Zilvia, não são apenas em benefício próprio. Para ela, o fechamento representa uma perda até mesmo a nível educacional, já que muitas escolas locam documentários e filmes mais críticos para exibir aos alunos. “Nós temos clientes muito assíduos, que gostam de filmes clássicos e que não teriam mais onde locar esse tipo de filme aqui na região”, lamenta.

Um dos clientes mais fiéis, aos quais Justina se refere, é o aposentado Raul Boeira, de 62 anos. Semanalmente, com uma lista escrita à mão e em folha de caderno, ele visita a videolocadora procurando por títulos que fogem ao comum do cinema norte-americano e conta que assiste, no mínimo, um filme por noite. O interesse pelo universo cinematográfico começou aos 15 anos de idade, quando começou a ler as críticas de cinema e resenhas sobre filmes que eram publicadas em jornais gaúchos. A leitura despertou o interesse em encarar o cinema com outros olhos, para além de um passatempo. “A partir daí, comecei a comprar livros sobre cinema e faço isso até hoje. Acho que aqui na Zilvia eu tenho ficha desde que abriu”, ele resgata. A videolocadora existe há mais de 27 anos. “Eu não assisto nada na televisão, nem mesmo jornal, só uso o DVD e vejo tudo nele”.

A paixão pela sétima arte é tanta que duas vezes ao mês Raul se desloca até Porto Alegre apenas para assistir aos filmes que estão em cartaz nos cinemas de lá e que, segundo ele, não aparecem no circuito cinematográfico de Passo Fundo. “Aqui o cinema é dirigido ao público infantojuvenil, não passam filmes adultos. Então a locadora é o local onde a gente encontra esses filmes”. Sobre a internet, Raul diz que, para ele, serve somente como ferramenta de pesquisa. Nada de downloads ilegais ou assinaturas de streaming. E a tarefa é levada a sério: embora chame de hobby, o hábito de ver filmes vai muito além de uma simples distração. “Não é uma brincadeira, é um estudo. Eu uso a internet para acessar sites especializados e para conhecer os diretores mais importantes do cinema, as obras mais relevantes, as histórias do cinema e suas fases. Outra dica muito boa é procurar filmes premiados em festivais, como o Festival de Berlin, Veneza, Cannes, San Sabastián, Montreal. Se ganhou, você já sabe que é um filme diferenciado”, comenta.

Na tarde de uma quinta-feira chuvosa, em que conversou com a reportagem de O Nacional, Raul carregava uma longa lista de filmes que esperava encontrar na videolocadora. As anotações ocupavam a frente e o verso de um pedaço de papel. “A minha mulher, como professora de Literatura, sempre gostou de cinema também. O cinema e a literatura fazem um par interesse. Agora, por exemplo, ela pediu para eu fazer um levantamento dos filmes que têm histórias adaptadas do escritor Dostoiévski, então eu fui na internet e fiz essa lista”. Na relação, que ele exibe com boa vontade, constam também, entre outras nacionalidades, filmes dinamarqueses, russos e asiáticos. No fim, cerca de vinte minutos mais tarde, Raul acaba locando três filmes: um do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, um do chinês Wayne Wang e outro do macedônio Milcho Manchevski. “Depois de assistir, eu e a minha esposa ficamos uma hora conversando sobre o filme. É uma atividade cultural prazerosa. Tomara que a gente morra antes da Zilvia”, brinca.

Relação de complementaridade

Atrás do balcão, assistindo pelo canto do olho a um filme preto-e-branco, a funcionária Ticiane Pitágoras conta que uma das sessões favoritas dos clientes é a de diretores. “Separamos nessa categoria porque assim fica mais fácil de encontrar, caso alguém queira ver vários filmes do mesmo diretor”, ela explica. “Não temos de todos, é claro, mas os principais estão aqui: Akira Kurosawa, Quentin Tarantino, Alfred Hitchcock”, cita alguns exemplos. “Tem pessoas que vêm e locam um ou dois filmes. Outras levam dez de uma só vez para assistir ao longo da semana. É muito variável, mas locamos no mínimo uns cem filmes por mês”.

Para ela, embora a internet seja a maior concorrência das videolocadoras e a grande responsável pelo fechamento em massa de muitas delas, a relação entre as duas plataformas ainda é de complementaridade. “Hoje, na internet, tem muitos filmes mais clássicos e relacionados à arte que não se consegue. E o nosso público é mais esse, mesmo. Ainda tem quem venha pelos filmes mais novos, mas a maioria é pelos antigos. Até filmes para trabalhos acadêmicos, que as pessoas não encontram tão fácil para baixar. No meu ponto de vista, nós complementamos essa era digital e ela complementa a gente. Eles não têm como ter acesso a tudo e nós também não”, avalia.

O prazer que muitas pessoas sentem em passear em meio às prateleiras e perder horas conferindo sinopses em caixinhas plásticas é outro fator que as plataformas digitais não foram capazes de substituir de maneira satisfatória. Cliente da Zilvia há mais de 15 anos, Douglas Marques de Camargo, 34, frequenta o acervo toda semana. A cada visita, o sentimento de nostalgia é predominante. “Eu continuo frequentando porque gosto mais da parte física. Tenho vários filmes em casa, inclusive, porque gosto de ter na minha mão e escolher o horário em que quero assistir. Na hora de escolher, dou sempre preferência aos clássicos e filmes da minha geração. Foi na infância que comecei a ter esse hábito. Eu e meu irmão assistíamos filmes de luta, muitos deles do Van Damme, Chuck Norris, Bruce Lee... Tínhamos aquele momento de família, em que passávamos as tardes assistindo filmes, depois íamos brincar e botávamos o próprio nome dos atores dentro da brincadeira”, compartilha em tom saudosista.

“Cada plataforma possui suas particularidades”

Na opinião de Maximiliano Corralo, manter-se atual e competitivo são dois pontos essenciais para continuar no mercado. Há 28 anos trabalhando no mesmo endereço, é ele quem administra a Locadora Max DVD, sempre de olho nesses princípios. Nos últimos anos, além de manter as locações a preços acessíveis e flexibilizar a data de devolução dos filmes locados para que os clientes não precisem se locomover até a locadora tão cedo, Max também atualiza constantemente um site onde é possível consultar todo o acervo da Max DVD e ainda ficar por dentro de algumas notícias sobre o mundo do cinema. “Temos o site há vários anos, na verdade. Duas horas depois que o filme chega na locadora, a gente já coloca no site. Então se o cliente quer saber se tem um filme ou se chegou um lançamento que ele estava esperando, é só procurar lá. Dá pra ver o trailer, a sinopse, a caixinha, tudo, antes de vir até aqui”.

De acordo com Max, apesar de o fluxo de clientes em sua locadora ter diminuído em cerca de 30% quando comparado aos anos de auge do segmento, o balanço ainda é positivo. “Aqui no Centro eu estou trabalhando praticamente sozinho, porque a maioria das locadoras fecharam. Então todo dia chega gente nova para fazer ficha, sem falar nos clientes que já são fieis e naqueles que não apareciam há 2 anos e, de repente, vêm locar filmes. É um preço muito atrativo. O cliente não vai ficar uma tarde toda baixando filme no computador ou pagar por uma assinatura, quando vem aqui e pega por um preço tão baixo”, esclarece.

Além disso, o empresário defende que a qualidade sonora e imagética de uma mídia física raramente consegue ser superada pelos produtos disponibilizados de forma virtual. “Cada plataforma possui suas peculiaridades. A Netflix se torna muito cômoda aos clientes, que não precisam vir até a locadora pegar o filme e depois voltar para devolver, mas ela não tem o mesmo produto. O  DVD e Blu-Ray te proporcionam uma qualidade de áudio muito superior. Sem falar que aqui, por exemplo, eu tenho uns 16 mil títulos. Dificilmente você vai encontrar os filmes recém-lançados, que temos aqui, em um streaming, na mesma velocidade. As locadoras continuam essenciais”.

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