O clima lembra a sala-de-estar de um velho amigo. Na Casa de Cultura Vaca Profana, cadeiras, sofás e tapetes aconchegam algumas dezenas de pessoas que, livres de muitas formalidades, constituem juntas uma espécie de ritual de acolhimento à beleza da literatura e da música. Nos encontros quinzenais da “Poética - Leituras Boêmias”, um gole de vinho, cerveja ou água permite umedecer a garganta e colocar as palavras para fora, para que elas sejam abraçadas por outras pessoas durante as sessões de leitura e bate-papo.
Tendo como principal proposta democratizar o acesso à literatura, à música e à arte de maneira geral, a Poética promove quinzenalmente rodas de poesias, seguidas de apresentações de músicos locais, sempre nas terças-feiras à noite, na Vaca Profana. Durante a sessão, a parte literária dedica-se a textos e poesias selecionados de acordo com um tema proposto previamente, e abre espaço para que os participantes realizem leituras de obras dos autores escolhidos conforme a temática ou, também, de suas próprias criações. O evento é uma parceria do coletivo Confraria da Afetividade, Casa de Cultura Vaca Profana e Jornada de Literatura de Passo Fundo.
Historiador e um dos coordenadores do projeto, Luiz Carlos Tau Golin comenta que, historicamente, encontros literários foram consagrados nos saraus. “Geralmente, os poetas apresentavam suas obras, ainda quando o livro circulava pouco. No Brasil temos projetos permanentes de literatura reconhecidos”. Assim, em uma proposta semelhante, quando o projeto Poética foi pensado, a ideia dos organizadores foi reunir alguns aspectos. O primeiro deles era que deveria ser uma roda de poesia ou prosa curta, em que o público falasse de seus autores preferidos, sendo leitor ou autor também. O segundo aspecto era formalizar a atividade em três momentos: a coordenação faria a apresentação temática e relacionaria autores que tratavam dela, demonstrando com poemas. No segundo instante, passaria para a roda de poesia. Nela, o público tomaria a cena, com a leitura de poemas temáticos, livres ou mesmo autorais. No encerramento, os músicos convidados apresentariam canções relacionadas ao tema.
Com esse modelo, Tau Golin considera que a Póetica se transformou em um encontro de afetividade. “A Poética, no instante em que pratica a elegia à humanidade, à diversidade, à ilustração, à igualdade, à afetividade, incide com valores pétreos no cotidiano. E isso talvez seja importante numa conjuntura embrutecida, desumana e de disseminação dos ódios e mesmo de políticas de extermínios dos outros”, descreve. Essa percepção de uma conjuntura ríspida, citada pelo historiador, é a principal norteadora para a escolha dos temas das rodas, que surgem como forma de resposta ou posição. Como exemplo, a jornalista Vanessa Lazzaretti, que começou a participar do projeto há cerca de um ano e, pouco depois, passou a fazer parte da coordenação, cita as edições voltadas à poesia feminista, poesia de resistência e poesia brasileira. Em outras vezes, nas palavras de Tau Golin, os temas são escolhidos para o preenchimento de vazios, ânsias, manifestações de admiração e rememoração de esquecidos. “Fizemos muitos tributos. Assim retomamos para a agenda cultural poetas e músicos fundamentais relegados pela indústria cultural. Muitos desse temas resultam em sessões de elevadíssimas sensibilidade e sentidos existenciais”, comenta.
Sensibilidade e resistência
Nas primeiras edições da Poética, ainda quando era realizada no Backstage Pub, a sensibilidade citada por Tau Golin era impressa no próprio nome do evento. É que, embora hoje o nome Poética seja acompanhado de Leituras Boêmias, a iniciativa já foi chamada de Segunda da Afetividade e Quarta da Afetividade. “Na última Jornada da Literatura, seus promotores se inspiraram em aspectos do formato da Poética para leituras nos bares durante a noite, depois das sessões regulares na Universidade de Passo Fundo. Essas atividades tiveram enorme sucesso na última Jornada, com o nome de ‘Leituras Boêmias’. Foi também inserida no calendário do município e apresentada em Porto Alegre, então acabamos acrescentando o nome à Poética”, esclarece.
É esse clima sensível, despretensioso e acolhedor que encanta os participantes. Para Vanessa Lazzaretti, por exemplo, a parte favorita dos encontros é o clima propiciado. “O que eu mais gosto nos encontros é o clima que a Poética propicia. É um lugar de partilha, onde cada participante pode compartilhar com os demais os versos que lhe tocam. Justamente por isso, acabamos criando um vínculo afetivo, por que a poesia é algo tão pessoal e carregado de sentimentos, que a simples escolha de um poema para partilhar já reflete um pouco do que cada pessoa é”, compartilha.
Ao mesmo tempo, por trás do tom de aconchego, reside a força da resistência abraçada pelos participantes. “Eu acho que a cultura é uma forma muito importante de resistência, porque ela nos ajuda a manter viva a ternura, mesmo com todos os problemas que vivemos atualmente no país. Não podemos permitir que as turbulências que enfrentamos no dia a dia nos tornem pessoas amargas e frias. A cultura e, especialmente a poética, contribui para que isso não aconteça. É uma forma de mantermos acesa a esperança e a vontade de lutar por um país melhor, de estimular nosso senso crítico”, opina a jornalista.
Força à cena cultural
Na percepção de Tau Golin, o principal saldo deixado pelos encontros é servir de inspiração para a formação de novos coletivos, fomentando assim a cena cultural da região. Para ele, que brinca sobre já serem espécies de consultores sobre este modelo, isso diz tudo. “Hoje, é incalculável o número de pessoas que se mantêm regularmente ou de maneira esporádica nas sessões da Poética. É simplesmente lindo o impacto nas pessoas. Muitas se transformaram em leitores públicos de literatura. Talvez o sucesso também se deva ao critério de ‘não declamar’, mas de ‘ler’ e ‘falar’ de poesia, comentar sobre obras e poetas. Esses aspectos da Poética também retiraram dela o enquadramento oficial laudatório de coisas duvidosas. A Poética é o lugar do humano e onde se cogita sobre os elementos mais dignificantes da vida”, expõe.
A atividade ganha espaço na parceria estabelecida há anos com a Casa de Cultura Vaca Profana, um espaço caracterizado justamente por incentivar iniciativas culturais. “A Vaca, juntamente com o Rito Espaço Coletivo, são os espaços culturais mais relevantes de Passo Fundo por uma característica. São independentes, mantidos pelos seus coletivos cooperativados, formado por essa espécie rara de pessoas: os que se doam. Quando surgiu a Casa de Cultura Vaca Profana, percebemos que formávamos uma irmandade de resistência à mediocridade e de promoção aos valores fundantes da humanidade. Nos enlacemos e nunca mais nos largamos. Às vezes ‘traímos’ a Vaca com o Rito (risos), ou mesmo com outros encantamentos que nos seduzem para apresentações”, conta Tau Golin.
Em consonância, Vanessa considera que a Poética tem feito da poesia algo inteiramente popular, já que os encontros são abertos para todos que tenham desejo de participar. “Eu penso que acaba um pouco com aquela ideia de que a poesia é elitista e destinada apenas aos frequentadores das academias. A poesia faz parte da nossa cultura popular e por isso precisa estar ao alcance de todos”, salienta.
Os encontros da Poética - Leituras Boêmias acontecem quinzenalmente, nas terças-feiras, às 20h. As sessões são sempre na Casa de Cultura Vaca Profana (Rua Paissandú, 180) e a entrada custa R$ 10. A programação é divulgada cerca de uma semana antes da sessão, na página facebook.com/leiturasboemias.