Um espaço de legitimação da voz feminina

Neste Dia Internacional da Mulher, editora passo-fundense lança coletânea com textos de 62 autoras brasileiras, onze delas são passo-fundenses

Por
· 4 min de leitura
Editora-chefe da Editora Desdêmona, Luciana Lhullier descreve o projeto como a busca pela criação de espaços mais igualitáriosEditora-chefe da Editora Desdêmona, Luciana Lhullier descreve o projeto como a busca pela criação de espaços mais igualitários
Editora-chefe da Editora Desdêmona, Luciana Lhullier descreve o projeto como a busca pela criação de espaços mais igualitários
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Uma pesquisa realizada pela professora da Universidade de Brasília, Regina Dalcastagné, revelou que entre os anos de 1990 e 2004 mais de 70% dos livros publicados por grandes editoras brasileiras foram escritos por homens, brancos e moradores do eixo Rio-São Paulo. O dado evidencia uma realidade sobre a qual escritoras mulheres sempre reclamaram: a falta de representatividade dentro do mercado literário. Neste cenário, com a intenção de lutar contra o conformismo e criar um espaço que legitime a voz feminina, surgiu no ano passado, em Passo Fundo, a primeira editora da região voltada exclusivamente a publicações escritas por mulheres. O primeiro fruto desta iniciativa nasce em uma data bastante simbólica: no Dia Internacional da Mulher, a Editora Desdêmona lança uma coletânea com textos de 62 autoras brasileiras. Dentre elas, onze são de Passo Fundo.

 

Intitulada “As Coisas que as Mulheres Escrevem”, a obra reúne crônicas, contos e poemas escritos por mulheres de todo o Brasil e selecionados a partir de um projeto sem custo algum para as autoras. O lançamento acontece durante um evento aberto ao público, na Livraria Delta do Passo Fundo Shopping, nesta sexta-feira (8), a partir das 18h30min, com a presença de algumas das autoras. Conforme explica a editora-chefe da Desdêmona, Luciana Lhullier, o fato de o primeiro trabalho lançado pela editora ser uma coletânea já representa, por si só, uma característica bastante especial e que vem ao encontro da proposta defendida pela iniciativa. “A Desdêmona se propõe a trabalhar com projetos, com crescimento e com união. Uma coletânea é isso, é um grupo de autoras que estão ali, juntas, formando um livro e mostrando o seu trabalho. Eu acho que casa muito bem com a nossa ideia de dar voz às mulheres, porque em uma coletânea você consegue dar esse espaço para muitas pessoas. Cada uma mostra apenas um pouco de si, mas todas mostram algo”.


Essa tentativa da Desdêmona de diminuir o silenciamento de mulheres aparece especialmente no nome da própria editora, inspirado na personagem da tragédia de Shakespeare “Otelo, o mouro de Veneza”. A peça narra a história de Desdêmona, morta pelo marido Otelo depois que ele fantasia estar sendo traído pela mulher. A personagem é asfixiada antes de ter a chance de ser ouvida. “Eu sempre tive muito carinho pelas personagens femininas do Shakespeare, eu acho que ele compreendia muito bem a alma humana. A Desdêmona é uma personagem que nunca conseguiu se defender de uma acusação infundada, ela negava a traição, mas foi morta sem nunca ter sido ouvida propriamente. Para a gente, é um nome muito significativo, porque trabalhamos com criação, com vida, para voltar a dar fôlego para a Desdêmona e para quem geralmente não é escutada”, esclarece Luciana.


Ainda de acordo com a editora-chefe e organizadora da coletânea “As Coisas que as Mulheres Escrevem”, antes mesmo do lançamento oficial da obra, o trabalho já tem rendido frutos bastante positivos e que abrem caminho para o reconhecimento de novas autoras. Entre os principais retornos está a criação de grupos de leitura e discussão da obra, fomentados por mulheres de diferentes estados do Brasil. “É isso que a gente quer. A gente sabe que as mulheres escrevem e escrevem muito bem, tanto que recebemos 140 textos para serem avaliados somente para essa primeira coletânea. O que acontece é que elas não têm tantas oportunidades quanto os homens”, destaca.


Pluralidade de vozes
Um dos maiores nomes da literatura contemporânea, a estadunidense Maya Angelou já dizia que “não há agonia maior do que carregar uma história não contada dentro de você”. Entre as 62 autoras que compõem a coletânea “As Coisas que as Mulheres Escrevem”, muitas tem essa agonia cessada pela primeira vez. A passo-fundense Érika Novello Farias é uma delas. Ela conta que este é seu primeiro trabalho a integrar uma publicação literária e enaltece a proposta da editora por nadar contra uma maré que tende a destacar trabalhos masculinos. “A gente sabe que pouquíssimas mulheres brasileiras têm visibilidade na literatura. É fácil de perceber até mesmo na faculdade, porque a maioria das obras estudadas e as obras que temos acesso nas bibliotecas e nos meios online são escritas por homens. Então espaços que dão voz ao que as mulheres querem falar, que promovem a visibilidade de escritoras e, principalmente, incentivam escritoras iniciantes, são fundamentais”, opina.
Estudante de Letras, Paula Cunha, que também tem um de seus contos publicado na coletânea, concorda com Érika. Ela conta que seu contato com a literatura é antigo. Além da graduação na área, Paula escreve desde os treze anos, já trabalhou na Biblioteca Municipal de Passo Fundo, no projeto Mundo da Leitura e ajudou a escrever uma obra já publicada. No entanto, apesar da experiência, essa é somente a segunda vez que ela encontra espaço para publicar seu trabalho. “O mercado literário ainda é muito desigual. Isso são pesquisas que apontam, não é só um achismo. É um mercado que já é difícil por si só, quando você é mulher então e escritora iniciante é ainda mais raro encontrar pessoas que te escutem”, expõe.


Conforme releva Paula, mesmo com novas plataformas de publicação surgidas com a popularização da internet, encontrar reconhecimento como escritora é uma conquista para poucas. “E eu não estou falando de fama, porque aí sim sabemos o quanto é raro, falo apenas de reconhecimento. Eu já fui atrás de algumas plataformas para publicar meus trabalhos, mas você não tem suporte algum, não conta com divulgação, não consegue chegar à mídia. É muito elitizado”. É por isso que, para ela, projetos como o da Desdêmona são fundamentais: a coletânea abre espaço para uma pluralidade de vozes. “São 62 autoras brasileiras em um único livro. Isso significa que são 62 histórias de vida sendo legitimadas. É uma leitura muito forte, muito intensa e muito diversificada, porque as mulheres carregam muitas vivencias não-contadas dentro delas. É um projeto incrível. Eu estou realmente muito feliz e muito emocionada em fazer parte disso. Imagino que esses sejam os mesmos sentimentos das outras autoras”.

Gostou? Compartilhe