Quando as novas tecnologias transformaram o universo fonográfico, houve quem acreditasse que os discos de vinil estariam fadados a coleções de velhos saudosistas. No entanto, para os fanáticos por música, o aspecto etéreo do digital nunca preencheu a vontade de se estabelecer uma relação mais profunda com o som produzido pelos artistas, tampouco foi capaz de superar a qualidade dos queridos bolachões. Foi percebendo uma brecha neste mercado que, em 2013, Rodrigo “Garras” de Andrade fundou o Selo180. Em quase seis anos de existência, o selo independente já lançou cerca de 30 vinis, 30 CDs e mais de 100 discos digitais. Trabalhos que incluem desde artistas da cena alternativa, até nomes consagrados como Cachorro Grande, O Terno e Raul Seixas.
É no apartamento onde mora, no centro de Passo Fundo, que Garras toca o selo e recebe amigos e clientes que desejam conhecer seu trabalho. Por lá, as paredes repletas de quadros ligados ao universo musical dividem espaço com estantes onde estão abrigados os discos lançados pelo Selo180 e os mais de mil vinis da coleção pessoal do passo-fundense. Foi nesse ambiente também, entre tragadas de cigarro, alguns goles de café e o brilho colorido do disco holográfico de Edy Star girando em um toca-discos, que Garras conversou com a reportagem de ON sobre a criação do Selo180, o porquê de o vinil se manter relevante e as novidades que os fãs de Raul Seixas podem esperar ainda neste ano.
Antes de ter o selo, você era jornalista, certo?
Sim. Eu tive um site de jornalismo cultural logo que surgiu a ferramenta de blog, chamado Os Armênios. Como eu fui um dos primeiros a aparecer com isso, a gente tinha muito acesso. Eu também sou formado em História e tenho mestrado em Literatura. Na real, o que eu queria para a minha vida era trabalhar com jornalismo cultural, mas na última década o jornalismo foi se transformando muito e eu vi que foi morrendo aquele jornalismo cultural que eu pretendia fazer. Ainda existe, mas poucos. O lance de trabalhar com os discos acabou sendo um desdobramento do conhecimento que eu fui tendo como jornalista.
O interesse por música, em si, vem desde a sua adolescência?
Sim. A minha família não é nem um pouco musical. Eu comecei a me interessar por música na minha adolescência, na década de 90, ouvindo música pop no rádio. Depois, comecei a andar com alguns amigos que ouviam música. As más influências, né? (risos). Fui me inserindo no meio, fazendo fanzines, colecionando discos, organizando shows. A paixão começou assim. Até tem uma história engraçada: eu terminei um namoro e na mudança para o meu novo apartamento eu quebrei o meu toca-discos. Isso aconteceu mais ou menos quando houve um revival do vinil, então eu fui atrás de outro aparelho e coloquei para ouvir os mesmos discos que eu já tinha e já ouvia. Foi quando eu notei que o toca-discos que eu tinha antes era muito simples. Eu não via uma qualidade superior de som em relação ao CD. Eu achava até pior. Com o aparelho novo, eu pirei, era outra qualidade. Eu comecei a vender meus CDs e comprar tudo em vinil. Virou um hobby.
E aí você começou a trabalhar com isso?
Sim, eu comecei vendendo discos de maneira bem informal para alguns amigos que começaram a pedir. Quando eu vi, estava ganhando mais grana com isso do que com qualquer outro trabalho que eu fazia. No mesmo período, começou a sair todo ano manchetes que diziam “vendas de vinil batem recorde”. Eu pensei “então talvez eu possa criar um selo e começar a lançar discos”. Eu via um mercado que não estava sendo explorado. Aí eu fiz meio que tudo junto. O Selo180 tem duas frentes diferentes. É uma loja de venda de discos e que faz lançamentos também. O primeiro lançamento que eu fiz foi um da Cachorro Grande. Eu já conhecia eles há anos e deu super certo. No começo, eu tive alguns sócios, mas hoje eu faço tudo sozinho praticamente, tenho só um designer que me ajuda no material gráfico. No início do selo, a proposta era trabalhar só com vinil. Só que aí comecei a ser procurado por algumas bandas muitos legais, mas que não justificavam um lançamento em vinil. É muito caro. Então eu comecei a lançar em CD e nas plataformas de streaming. Foi acontecendo. Eu já trabalhava com jornalismo cultural e era antenado no que acontecia na cena musical brasileira, por isso eu dei sorte de conseguir acesso a alguns artistas grandes para fazer os lançamentos, gente de expressão nacional, tipo a própria Cachorro Grande e o Edgard Scandurra, do Ira!.
São contatos que você já tinha da profissão... Mas e esses artistas novos, são eles que te procuram?
Eu sou procurado semanalmente, mas algumas coisas muito boas sou eu que foco, vejo que tem potencial e vou atrás. Uma dessas bandas descobertas foi O Terno, que hoje é um dos principais nomes do rock brasileiro. Eu fiz contato com eles na época que eles tinham lançado só um CD. Firmamos uma parceria entre o Selo180, o Selo Risco e a própria banda e lançamos um compacto em vinil e o segundo disco deles. Essa foi uma cartada certeira. O disco esgotou super rápido. Ficou quase no topo de todas as listas de melhores do ano.
No caso do Raul, como foi para conseguir os licenciamentos?
Foi bem complicado. Eu sempre quis fazer no selo reedições de discos históricos e passei anos tentando contato com várias gravadoras, mas tinha uma dificuldade muito grande, porque eles não dão muita abertura para selos independentes. Como eu sou um grande fã do Raul, eu sabia que alguns discos dele estavam em gravadoras pequenas e que alguns desses discos não tinham saído em vinil, ou seja, faltava na coleção de todos os fãs. Foi um lance bem de jornalista cultural, quase investigativo. Eu consegui licenciar em uma dessas gravadoras menores um disco ao vivo, [“Isso aqui não é Woodstock, mas um dia pode ser"] e, depois, conseguimos licenciar com a Som Livre o “Metrô Linha 743”. No caso dos relançamentos históricos, eu faço em parceria com o Record Collector. Quando é de um artista assim, são outros processos porque além de licenciar tem que recolher os direitos autorais, divididos com os herdeiros do artista e as pessoas que tocaram e produziram o disco. É bem burocrático, às vezes leva dois anos o processo todo. Quando eu lancei o primeiro Raul, em 2016, o último vinil lançado dele tinha sido em 1994, então eu estava lançando um disco inédito e o primeiro em mais de 20 anos. Era uma prensagem grande, de mil discos, que esgotou em 36 horas, vendendo apenas pelo site do selo. Foi um recorde.
Há outros relançamentos do Raul vindo por aí?
Para esse ano, tem mais três. Existe uma quantidade gigantesca de material completamente inédito que eu vou começar a trabalhar a partir do ano que vem, com autorização da família e do Sylvio Passos, que é o presidente do fã clube oficial do Raul desde os anos 80. Raul é uma coisa que eu não vou parar de trabalhar tão cedo.
Um dos discos do Raul pelo Selo180 ganhou, inclusive, um prêmio de disco mais bonito de 2018, pelo site Universo do Vinil.
Foi o Metrô Linha 743. É um disco de carreira dele, lançado em 1984. Nesse caso, foi a Som Livre que aceitou licenciar para a gente. Conseguimos fazer uma edição bem legal, ao invés de simplesmente relançar como ele tinha saído na época. Na edição do Selo180, além do encarte original, expandimos o disco com uma faixa bônus inédita em vinil – Anarkilópolis, que é uma versão inicial de Cowboy Fora da Lei –; colocamos um encarte a mais, que é o release de imprensa de 1984; capa dupla com uma foto inédita; e um livreto de 28 páginas contando toda a história do disco. Eu acho que somente o Selo180 e a Record Collector têm feito esse tipo de lançamento expandido, no Brasil. Também lançamos juntos um do Leno, que ganhou o prêmio de Resgate Histórico Mais Importante, no ano passado. É interessante porque eu costumo mandar alguns discos para a imprensa, mas eu nunca havia mandado nada para o Universo do Vinil. Mesmo assim, nos três anos que existe a votação, o Selo180 sempre ganhou alguma categoria. Eu fico até meio constrangido porque parece que é uma falcatrua (risos).
O lançamento mais recente de vocês também tem essa relação histórica. É um disco do Edy Star, o Sweet Edy.
Sim. É um disco incrível, bem obscuro, que saiu em 1974, e não vendeu bem na época. Mas com o passar dos anos o pessoal foi redescobrindo o disco e ele começou a ser muito procurado por colecionadores. O Edy Star é um artista baiano que andava tanto com a turma do MPB, quanto com a turma do rock. Ele chegou a gravar um disco com o Raul, a Miriam Batucada e o Sérgio Sampaio: o Sociedade da Grã-Ordem Karvenista. Isso foi antes de o Raul explodir. O Sweet Edy veio três anos depois. É um disco realmente especial e histórico, por diversos motivos. O Edy era muito bem relacionado com o meio artístico, então o disco é repleto de nomes grandes que compuseram para ele, como Raul Seixas, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso... São músicas que estão somente no disco do Edy, então, se você é fã de qualquer um deles, para ter a coleção completa da obra do artista precisa do disco do Edy. Outro detalhe é que ele saiu na época da explosão do glam rock e é um disco assumidamente gay. Fizemos uma edição bem legal, com materiais inéditos, e como o glam rock tem essa coisa espalhafatosa, glamourosa e exagerada visualmente, eu queria um disco que tivesse algo diferente. A Vinil Brasil desenvolve algumas tecnologias novas para o vinil e eles propuseram fazer um disco holográfico. Na teoria, é somente o segundo disco lançado com esse efeito. Contra a luz, ele brilha e lembra as cores de um arco-íris. Foi um disco caro de produzir, mas fiz com muito tesão.
O foco do Selo180 está mais na qualidade do que na questão do preço, né?
Exato. Eu sou um colecionador. Eu costumo falar que eu sou um desempresário. As minhas escolhas são sempre relacionadas a como o disco pode ficar o mais legal possível, nunca na pegada de economizar para sobrar mais lucro. É sempre pensando em criar obras de arte, peças que justifiquem todo o investimento em vinil. É uma visão de fã.
Onde acontece a fabricação?
Aqui no Brasil tem duas fábricas, a Polysom e a Vinil Brasil. É onde fazemos hoje. Mas os primeiros dez discos do Selo180 foram feitos na GZ Media, na República Tcheca. É a maior fábrica de discos do mundo, onde prensam os discos dos Beatles, The Who, Oasis.
Por que você acha que o vinil se manteve, mesmo com outras tecnologias?
São várias coisas que fazem com que as pessoas tenham esse apego ao vinil. Uma delas, para quem viveu a época de surgimento do vinil, é um lance saudosista. Outras, é pela qualidade de som. Tem também a questão da parte gráfica, que é maior e mais interessante, e o lance de colecionismo. Acaba sendo um combo. Eu tenho muitos clientes que são bem jovens e eles não têm uma identificação emocional com o vinil na história deles, mas são pessoas que gostam de música e para quem o suporte digital não é o suficiente. Essas pessoas querem se envolver de maneira mais profunda com a música. Com a internet, a música se tornou grátis e ela de certa forma foi banalizada, se tornou uma trilha sonora para tarefas do dia-a-dia. Eu faço discos para pessoas que se dedicam para a música da mesma forma que um literato se dedica para um livro e um cinéfilo se dedica para um filme. São pessoas que colocam um disco para tocar e vão sentar na frente do som e ouvir aquele disco inteiro, prestando atenção em todas as nuances.
Você tem esse hábito de parar todos os dias para de fato ouvir música?
É meio engraçado. Eu trabalho muito com música, então às vezes eu passo dias e dias tocando discos sem parar, em todos os formatos. Mas também tenho épocas em que passo semanas sem ouvir nada (risos). Um pouco saturado, sabe? Mas, sim, faço muito isso de parar e ouvir música. Com amigos, inclusive. É uma cena engraçada. Fica todo mundo parado em silêncio, só ouvindo a música.
Por fim, quais os planos do Selo180 daqui para frente?
Neste ano, teremos pelo menos três discos do Raul Seixas, o último disco ao vivo da Cachorro Grande e a estreia solo do Beto Bruno. Estou trabalhando nesses no momento, mas surgirão mais coisas. Em formato digital, tem bastante coisa ainda. Vai sair O Império da Lã, o trabalho solo do Beto Bruno e algumas bandas do circuito independente. Mas eu quero focar mais mesmo nesse lance de reedições históricas. É um formato que funciona melhor. Por ser formado em História, eu tenho um tesão maior por fazer isso. Agora, com vários discos lançados, eu tenho conseguido abrir portas em gravadoras maiores.