Já faz algum tempo que o gosto por tatuagem deixou de ser encarado como “coisa de homem”. No entanto, embora tenha se tornado comum ver por aí mulheres exibindo orgulhosamente os desenhos marcados em suas peles, no mercado de trabalho os reflexos de rótulos sexistas permanecem. Nos estúdios do país, a presença de profissionais mulheres realizando tatuagens e perfurações ainda é uma novidade. Imagine, então, encontrar no interior do estado um estúdio que seja composto e comandado exclusivamente por elas? Na região norte gaúcha, mais especificamente em Passo Fundo, a primeira iniciativa desse gênero está prestes a existir. Com data de lançamento marcada para o próximo sábado (18), o Bendita Geni é um estúdio colaborativo formado por quatro tatuadoras e duas body piercers, que sentiam falta de espaços que estivessem abertos a aceitá-las profissionalmente.
A ideia surgiu na metade do ano passado, a partir do desejo da tatuadora passo-fundense Renata Rutzen, de 23 anos, de integrar uma equipe. Apaixonada pela arte do desenho desde a infância, ela conta que começou a tatuar aos 17 anos, mas nunca havia trabalho junto com outros profissionais. “O meu primeiro contato com uma equipe feminina foi trabalhando em um salão de beleza e eu gostei muito da energia. A convivência com outras mulheres me trouxe um aspecto diferente sobre o mundo feminino, mudou a visão de rivalidade feminina que eu tinha até então. Um tempo depois, eu saí do salão e comecei a ensinar uma menina a tatuar. Isso me fez ver que trabalhar em equipe, na tatuagem, também era bacana. Eu passei a pensar que seria interessante conviver com mais pessoas que tivessem esse mesmo desejo de trabalharmos e crescermos juntas”.
Porém, quando começou a conversar com amigas que também tatuavam e aplicavam piercings, Renata percebeu, através da vivência partilhada por todas elas, o quanto o mercado era pouco receptivo a profissionais mulheres. “Os ambientes são predominantemente masculinos e não é porque não existem mulheres interessadas. É porque raramente os homens abrem espaço para que elas integrem a equipe deles como artistas e, se abrem, costuma ser colocando como inferior a eles, nunca em pé de igualdade. Eles podem até te vender um curso e te ensinar o básico, mas eles não vão te dar um suporte. Eles não querem que você tenha a oportunidade de ficar melhor do que eles”, comenta. Para ela, o que acontece é um boicote às mulheres. “Isso vai desde coisas como não te darem o equipamento certo para trabalhar, só para tornar aquilo mais difícil. É um jeito de te desmotivar e fazer com que você desista”.
Espaço de sororidade
Decidida a trabalhar em um espaço em que o tipo de realidade ríspida e injusta fosse distante, a tatuadora resolveu então chamar as profissionais que conhecia para que, juntas, elas montassem seu próprio espaço. Assim, com o projeto prestes a sair do papel de maneira oficial, a equipe que comanda a Bendita é hoje formada por seis jovens na casa dos 20 anos: as tatuadoras Renata Rutzen, Duda Tessaro, Muriê Kummetz e Giulia Cittolin, especializadas nos mais variados estilos de tatuagem, e as body piercers Taut Rangel e Natascha Longhi. “A Giulia e a Natascha são nossas aprendizes. No momento que elas passarem para o cargo oficialmente, nós vamos abrir espaço para uma aprendiz nova, assim vai repassando o conhecimento e a gente ajuda mais uma menina interessada em aprender, para que elas não passem pelas dificuldades que as mulheres nesse ramo costumam passar. Sempre que contratarmos alguém, vai ser mulher”, salienta Renata.
O jeito feminista e sensível de gerir o espaço começa, inegavelmente, pelo nome do estúdio. A inspiração é a música de Chico Buarque, Geni e o Zepelim, conhecida especialmente pelo refrão que entoa “joga pedra na Geni!”. “A música retrata a imagem de Geni como uma mulher devassa, cheia das qualidades que a sociedade não quer que uma mulher tenha e por isso sua imagem é denegrida. Isso só é interrompido quando, em um momento na música, a Geni passa a ter uma serventia à população. É isso que acontece na nossa sociedade. No momento que a mulher te serve a algo, a imagem dela é mudada. Eu queria um nome feminino e acho que não poderia ter escolhido melhor. A Geni resume tudo. É a resistência. Além disso, eu gosto porque ela é uma travesti. Isso representa o nosso clubinho. Embora aqui sejamos só em mulheres [cis], nós aceitamos todo mundo. Mulheres trans sempre serão bem-vindas”, esclarece.
Até mesmo a arquitetura do estúdio é diferente, nada das caveiras, motocicletas e rock pesado em caixas de som, comuns nos estúdios tradicionais. De acordo com Renata, o cuidado em evitar isso é para que o espaço seja aconchegante. Também não há regras no horário de atendimento. “Todas têm a própria chave. Se a cliente quiser e a profissional estiver disponível, pode vir até de madrugada”.
Sensibilidade no atendimento
Quando a fundadora da Bendita Geni Tatuaria fala em dificuldades no mercado, as histórias que surgem entre conversas com as outras meninas da equipe são as mais diversas. A body piercer Taut comenta que sua primeira experiência traumática foi quando, aos 16 anos, decidiu colocar um piercing no mamilo. “O momento todo foi negativo. Eu era menor de idade, fui atendida por um homem e percebi, naquela época, que não houve nenhum respeito pelo meu corpo. Realmente, senti como se eu estivesse sendo violada. Depois de um tempo, eu notei que eu gostava muito de piercing e comecei a me perguntar: se era algo que eu podia fazer e assim ajudar outras mulheres a não passarem pela mesma situação que eu, por que não?”.
Segundo elas, cerca de 70% das mulheres que as procuram para tatuar ou colocar um piercing já fizeram isso antes, com um profissional homem, e não se sentiram confortáveis, mas precisaram terminar o procedimento porque não tinham alternativa. “É uma situação em que você está vulnerável. Você está lá fazendo, sem se sentir bem, insatisfeita, mas a pessoa que está te tatuando tem autoridade, ela está com a agulha na sua pele”, complementa a body piercer Natascha. Uma das mais novas em atuação na área, ela conta também que, quando decidiu aprender a colocar piercing, sofreu para encontrar um espaço. “Parece que, realmente, eles não querem te ajudar porque só tem espaço para homem. Aqui não. Trabalhar em um grupo de mulheres é muito bom porque a gente se ajuda. Se eu estivesse sozinha, eu teria muito mais receio”.
Cientes do quanto o serviço que oferecem pode impactar na autoestima das pessoas, as seis garantem que na Bendita Geni o cuidado com o corpo alheio é especial. Afinal, pelo menos no caso da tatuagem, a modificação corporal é permanente. “Nós gostamos muito do que fazemos porque, quando o trabalho é bem feito, é uma troca de energia tão boa. Eu saio daqui energizada. Depois que comecei a tatuar, eu passei a ser menos preconceituosa, como um todo. No momento que eu estou tatuando, eu aproveito muito para ouvir a vivencia da pessoa. Qualquer tatuagem, mesmo um pontinho que seja, tem uma história. Para nós, pode ser mais um dia da mesma coisa, mas para ela é um momento que dura a vida toda”, diz Renata.
“Você ajuda a pessoa com a autoestima e até a se sentir dentro de uma comunidade. Eu, por exemplo, tenho um piercing em uma parte do meu corpo que eu não gostava. Quando a Taut botou o piercing em mim, eu pensei ‘meu, obrigada!’. É isso. É para isso que a gente quer trabalhar. Ver a felicidade da pessoa depois que ela faz, o olhar que ela passa a ter pelo próprio corpo, é muito gratificante”, adiciona Natascha.
Bendita Geni Tatuaria
Endereço: Rua Morom, 1356. Edifício Frediani, sala 23
Instagram: @benditageni_tatuaria