Embora a constante luta da comunidade negra tenha ampliado o alcance da cultura de origem africana a novos espaços, a violência direcionada aos negros em suas mais diversas formas ao longo da história ainda apresenta reflexos facilmente perceptíveis. Dentro do mercado artístico, a invisibilidade é, talvez, a principal delas. Basta parar para pensar em quantas obras de artistas negros você consome com frequência para notar que os brancos ainda são a imensa maioria quando o assunto é reconhecimento. É para tentar transformar este cenário que, no último mês, a produtora cultural e militante do movimento negro, Mariene Jornada, lançou a Nairóbi Produções. Nascida em Passo Fundo, a produtora independente visa oferecer aos artistas negros da região um espaço onde possam desenvolver seus trabalhos, contando com serviços como agenciamento e assessoria, palestras, debates relacionados às pautas negras, produção de shows e eventos.
Atuando na produção cultural há cerca de dois anos, Mariene conta que já carregava o projeto dentro de si há bastante tempo quando finalmente conseguiu tirá-lo do papel. “Por já trabalhar com cultura, eu comecei a perceber a defasagem que a gente tem de artistas negros na mídia – não é que não existem artistas negros. Eles existem, mas não são tão divulgados. Para um artista, consolidar o sucesso é um caminho longo. Para o artista negro, assim como em qualquer outro âmbito na sociedade em que a gente vive, esse caminho fica um pouco mais tortuoso”. Para ela, as circunstâncias sociais, de classe e o preconceito estão entre os principais fatores a tornarem a trajetória de uma pessoa negra ainda mais difícil. “Assim como em qualquer outro meio. Na arte não é diferente. A cultura negra foi e continua sendo apropriada, modificada, esvaziada, embranquecida. Ser negro, não exclusivamente artista negro, requer uma consciência social e política. Infelizmente, a estrutura social posta e as disparidades inviabilizam que o povo negro possa adquirir tal consciência, então imaginem a dificuldade, dada a inversão de tempo e recursos, para um negro investir na carreira artística”, comenta.
Na lacuna deixada pela falta de artistas negros sendo promovidos pela grande mídia, cresce também o silenciamento, em determinado grau, da diversidade cultural de raiz africana – que, embora ampla, acaba sendo pouco difundida. “Eu nasci em Passo Fundo, morei em São Paulo e, quando lá, achavam que eu era baiana e não gaúcha. Isso mostra como a invisibilização é estrutural aqui no Rio Grande do Sul. Por isso, a ideia é transcender, expandir e colaborar com artistas de todo o Brasil. Acredito que as conexões vão se dando conforme o tempo e os passos que estamos percorrendo. Tem negros talentosíssimos por aí e eu acho que Passo Fundo carece de uma cena cultural um pouco mais rica, com as coisas um pouco mais atuais. Eu gosto de rock n’ roll também, mas tem uma infinidade de outras coisas que eu nunca pude viver aqui. A ideia da Nairóbi é, justamente, é fortalecer a comunidade preta que está produzindo arte e colocar o público em contato com a cultura negra. Criar essa conexão: povo, cultura e arte negra. É um reconhecimento e uma forma de respeito aos meus ancestrais. E a música, com certeza, é o nosso fio condutor”, Mariene justifica.
“Se existem artistas negros por aqui, onde eles estão?”
Para Mariene Jornada, que é ela própria mãe, mulher e negra, a importância de dar visibilidade tanto à cultura negra, quanto a mulheres e a LGBTs não se restringe ao mercado da arte. É uma forma de defender a existência dessas pessoas e promover o resgate histórico e social de vozes que há muito tempo são silenciadas. “Acredito na arte e na educação plural como formas de resgate da nossa história e de valorização da nossa ancestralidade. Representatividade é ter todas as formas, cores e amores visibilizados ao invés de um modelo homogêneo que todos devam se adequar. Não gosto da palavra ‘minorias’, porque na realidade somos majoritários em números. O Brasil foi construído com sangue de nossos ancestrais negros, sangue esse que, apesar de toda violência do nosso passado colonial, segue correndo em nossas veias e movendo nosso país. O fortalecimento de nossas estruturas passa pelo questionamento: se existem artistas negros por aqui, onde eles estão? Se não há, então qual o incentivo e condições são dados às pessoas negras para que possam explorar o lado artístico?”. E, conforme a produtora destaca, se dentro dos espaços já existentes a fala de mulheres, negros e LGBTs segue sendo abafada, então, novos meios para que esses indivíduos possam se expressar continuarão sendo criados.
Primeiros passos
A primeira produção da Nairóbi já tem data marcada. É um show que acontece no dia 6 de outubro, no Teatro Municipal Múcio de Castro, com a banda AfroEntes. Na estrada desde 2015, o grupo traz um repertório composto por músicas autorais que mesclam a tradição de matriz africana com sonoridade contemporânea em temas dançantes, reflexivos e afirmativos. Os AfroEntes são Nina Fola (voz e percussão), Nilson Tòkunbò (Baixo, voz, violão, cavaquinho e percussão) e Edu Pacheco (percussão). Essa é a primeira vez da banda em Passo Fundo. Os ingressos estão à venda por preço promocional (R$ 20) no Sebo Café e no Slow Café. “Irmãos negros”, como chama a produtora cultural, podem enviar os nomes para a lista de desconto: [email protected]. “Vai ser uma noite linda de conexão através da música”, adianta.