Centenário de Josué Guimarães: um legado sem fim

Para homenagear o centenário do escritor gaúcho, Universidade de Passo Fundo promoverá um ano inteiro de homenagens

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Há poucos anos, em 2016, noticiava-se “Tempo de ausência”: 30 anos sem Josué Guimarães, alusivo às três décadas de sua morte. Agora, em 2021, é “Tempos de Josué”: 100 anos do nascimento de um dos maiores escritores da literatura brasileira do século XX. Nascido no interior do Rio Grande do Sul, em São Jerônimo, em 7 de janeiro de 1921, ele foi jornalista, escritor, político e formador de leitores. Um cronista de muitos pseudônimos. Usou desde Dom Xicote a D. Camilo para descrever os momentos e as injustiças da sua época. Josué não acompanhou as transformações históricas, econômicas, culturais e sociais das últimas décadas, mas as suas obras mantêm uma atualidade sem igual. Uma jornada que se mantém viva e um legado sem fim.

São mais de 25 obras, escritas entre as décadas de 1970 e 1980. Autor de A ferro e fogo, Camilo Mortágua, Dona Anja, Tambores silenciosos, É tarde para saber, entre inúmeros outros primores da literatura, é considerado o último escritor com biografia no século XX. Narrava a realidade da sua época. “O autor de Camilo Mortágua embarcou contra as tormentas da história do século XX, cheio de catástrofes políticas. Sua vida, assim, é em si uma existência romanesca ou, se quisermos, uma trilha quixotesca, em luta contra injustiças e sofrendo as dores de sua luta. Não por acaso, seu amigo, Lauro Schirmer, jornalista, o considerava ‘um cavaleiro de notável figura’, ressalta o coordenador do Acervo Literário de Josué Guimarães (Aljog) e um dos coordenadores das Jornadas Literárias de Passo Fundo, o professor da Universidade de Passo Fundo (UPF), Dr. Miguel Rettenmaier.

Para homenagear o centenário de Josué Guimarães, a UPF dá início, nesta semana, a uma programação especial que se estende durante todo o ano. A primeira ação acontece nesta quinta-feira (7), às 20h30min, no dia do aniversário do escritor, quando o curso de Letras da UPF realizará uma live musical do Aljog. Os artistas Cássio Borges e Lari Acevedo cantam os 100 anos de Josué Guimarães, através de composições baseadas na obra do autor. A live será transmitida pelos links: abre.ai/upfonline ou youtube.com/c/UPFOnline. “A novidade é que pretendemos realizar a live de dentro do acervo do autor, fazendo, de um ambiente de pesquisa, um espaço de celebração”, explica Rettenmaier.

As ações serão realizadas em parceria entre a UPF, a L&PM, editora que alberga a obra do autor, a Secretaria de Cultura de Porto Alegre, representada pela Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães, e o Governo do Estado, representado pelo Instituto Estadual do Livro (IEL). “Estamos ainda em fase de projetos, mas, pelo que se desenha para 2021, [a programação] será em grande parte online. Há ainda a ideia de que realizemos mais uma edição do Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, premiação já tradicional, com um histórico de revelações de nomes como Lourenço Cazarré, Ernani Ssó, Altair Martins, Lucia Bettencourt, dentre outros. Mais ações serão realizadas em 2021, ainda em fase de planejamento”, adianta o professor.


Escrevia o que via e vivia

Josué tinha urgência de interferir na sociedade pela palavra literária. “Ele faz parte de um grupo de escritores que adotaram a narrativa realista como forma de combate contra as injustiças da história. Seu texto tem uma forte base de contexto, de problematização e de denúncia sobre o que o autor via e vivia. Por isso, e talvez por sua vida como jornalista, Josué Guimarães escrevia sob um forte sentimento de urgência. O mundo girava errado, e era necessário que se mudassem as coisas”, ressalta Rettenmaier.


Obras que transitam pelo tempo

Mesmo após trinta anos da morte de Josué, as obras dele mantêm a atualidade. As questões presentes nos seus livros, levantam reflexões e realidades contemporâneas. O coordenador do Aljog observa que, apesar da potência do contexto, sua literatura permanece iluminista mesmo anos depois de cada primeira publicação. Ele cita, por exemplo, romances como Tambores silenciosos, que se reeditam pela temática e pela atualidade de sua narrativa. “No caso específico dessa obra, há uma cidade sitiada por um prefeito militar, que tenta fraturar a comunicação dessa cidade com o mundo, de forma que apenas suas falsas verdades sejam admitidas. Na base política disso, o prefeito se nutre de condutas fascistas e de um nacionalismo falacioso. Em outras palavras, a narrativa está reeditada pelos tempos terríveis em que nos encontramos, mais de três décadas depois da morte do autor”, comenta o professor.


Formador de leitores e sua ligação com a Capital Nacional da Literatura

Josué foi um dos fundadores das Jornadas Literárias de Passo Fundo, uma das maiores movimentações literárias da América Latina. Além de reunir escritores, a ideia era formar leitores, por meio da leitura antecipada das obras dos autores que participavam do evento em Passo Fundo, que posteriormente, tornou-se a Capital Nacional da Literatura. “Josué convidava as pessoas a lerem seus romances, sentirem a força da estética literária, ao mesmo tempo refletindo sobre a realidade. Essa empatia, Josué levou às Jornadas de Literatura de Passo Fundo, ao fazer de um evento literário, um projeto associado à formação do leitor, em um encontro festivo entre autores e leitores. Esse carinho pelo leitor, Josué incorporou a sua literatura para jovens, curiosamente produzida em grande parte na década de 1980, momento em que se inauguram as Jornadas Literárias”, lembrou Rettenmaier, ressaltando que Josué foi o primeiro grande autor a respaldar o projeto das Jornadas Literárias, no começo dos anos 1980, dando início ao primeiro ciclo das Jornadas, coordenando e promovendo os encontros.


Acervo na UPF mantém vivo o legado do autor

Essa forte ligação com Passo Fundo, talvez tenha sido a principal razão da transferência do Acervo Literário de Josué Guimarães (Aljog), por desejo dos herdeiros, principalmente de Nydia Guimarães, para a estrutura do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UPF em 2007. Além disso, o atual coordenador do acervo fazia parte da equipe que pesquisava Josué Guimarães em Porto Alegre, sob a excelência da orientação da Dr. Maria Luiza Remédios, então coordenadora do Aljog na PUCRS, o que permitiu sequência metodológica a um trabalho afetivamente muito envolvido com a memória do autor de Camilo Mortágua.

O Aljog, localizado na Biblioteca Central da UPF, tem mais de 8 mil itens relacionados a Josué. O espaço abriga, conserva e cataloga objetos pessoais, correspondência, décadas de publicação na imprensa e, também, manuscritos e datiloscritos de obras que foram publicadas e também de inéditos. “Há fotos e livros pessoais de Josué (alguns com sublinhados e marginálias, em parte relacionadas à leitura do autor para sua produção literária). Um dos itens com mais exemplares é o de publicação na imprensa, feita em papel jornal. E há matérias dos anos 1940”, revelou o coordenador do Aljog. 

Grande parte desses materiais se encontram digitalizados e, no momento, o projeto passa pela recatalogação em uma plataforma específica, já projetada e desenvolvida em parte. “Uma vez realizado isso, qualquer interessado poderá “entrar” no acervo de Josué, em qualquer parte do mundo, na frente de alguma tela de computador”, garante Rettenmaier.


Motivos para ler Josué

Um dos traços marcantes da obra e da vida de Josué foi seu interesse de conscientizar a recepção. Por isso, segundo o responsável pelo seu Acervo, sua obra é “iluminista”. Josué desenvolvia estratégias de construção no que se refere a seu narrador. “O narrador de É tarde para saber’ por exemplo, resultava desses recursos, os quais advinham de um talento especial: a arte de saber contar uma história, informar e suspender informações até o momento certo de impacto e de desfecho. Assim, o Josué Guimarães de carne e osso, um homem de extrema polidez e simpatia, construiu narradores com o mesmo potencial de fixar a atenção e o interesse dos leitores”, afirma o professor da UPF.

O coordenador do Aljog tem inúmeros motivos para recomendar a leitura das obras do escritor. “Josué me formou como leitor em minha adolescência. Vim de uma escola muito conservadora, na qual a leitura de seus livros não seria recomendável. Mesmo assim, as primeiras luzes sobre a nossa sociedade em sombras surgiu de suas narrativas. Por elas vi um universo que tentava se esconder. Josué colocou o foco nas feridas, na lida de escritor, como seu amigo e mentor Érico Veríssimo já ensinara. O escritor não tem as respostas, não sabe suturar, mas seu sentido de existir passa por colocar luz naquilo que dói ao mundo”, destacou Rettenmaier.


Um guardião das memórias de Josué

O coordenador do Aljog não conheceu o autor pessoalmente, mas foi cativado pela sua obra, tornando-se um “guardião” da memória de Josué. “Por muito tempo me ressenti de não ter conhecido pessoalmente o autor que mudou minha vida. Hoje, contudo, tenho a resiliência de saber que meu papel nesta vida não é de ter memória sobre Josué Guimarães, mas guardar a memória dos outros e os resquícios materiais de sua passagem por aqui. E faço isso ajudado por bolsista que, como eu, não o conheceram, mas trabalham tão apaixonadamente como eu”, declara o coordenador do Aljog.


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Confira as próximas atividades:

- Colóquio "100 Josué (1921/2021)": entre 3 e 7 de maio, on-line, pelas plataformas da UPF, com a participação de críticos e pesquisadores tanto da obra de Josué, quanto de aspectos relacionados a sua personalidade, como o jornalismo e a política.

- “Tempos de Josué”: atividades mensais, preferencialmente no dia 7 de cada mês, com lives de leitores, amigos, professores sobre a literatura e a história de Josué Guimarães.

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