Vez ou outra, há vozes que surgem exigindo serem ouvidas. Chegam com tanta força e tocam de maneira tão profunda que parecem dizer que, a elas, o descanso de uma prateleira não é o suficiente. Enquanto escreve sobre o feminino, a escritora Marceli Andressa Becker (ou Mar Becker, como é conhecida) parece afirmar o mesmo. Desde que lançou seu primeiro livro, “A Mulher Submersa”, a autora passo-fundense tem sido mencionada como uma das poetas mais marcantes dos últimos anos.
Nascida e crescida em Passo Fundo, Mar Becker começou sua trajetória na escrita quando ainda era uma adolescente consumindo livros nas bibliotecas das escolas públicas passo-fundenses por onde estudou. Hoje morando em São Paulo, ela conta que, dessa época até o impulso de sentar diante do computador e começar a rascunhar poemas, “foi um piscar”. Há de ter acontecido algo além de um simples fechar e abrir de olhos, no entanto, para que Mar tenha despontado com tanto destaque na literatura brasileira recente. Lançado pela editora Urutau no ano passado, “A Mulher Submersa” chegou a ser eleito um dos melhores livros de 2020 pela Folha de São Paulo (Revista Quatro Cinco Um) e pelo Suplemento de Pernambuco.
Embora potente por si só, em “A Mulher Submersa”, não é a voz de Mar Becker que, sozinha, ressoa pelas páginas, mas também a voz de todas as outras mulheres que, por assim serem, parecem ligadas pelo mesmo fio com o qual a vida de cada uma é costurada. Essa vivência interligada é o que serve de matéria, em toda sua pureza, para o trabalho da autora. As dores e os amores das personagens de Marceli, ora narradas com delicadeza, ora contadas com a força de um tapa, moram entre calcinhas penduradas no varal, poeiras de unhas recém-lixadas e ventos traiçoeiros que vêm do mar. É na vida, portanto, que as mulheres de Mar Becker se encontram submersas – do erotismo à violência, da maternidade à infertilidade, da fogo da vida à melancolia da morte, com todas as minúcias que se escondem entre esses ciclos. E, sobre isso, não há quem possa falar melhor senão a própria autora.
O Nacional: Há muito das miudezas do dia a dia nos versos que você escreve. É no meio desse cotidiano que acontece o seu processo de criação ou você costuma criar rituais específicos na hora de escrever?
Mar Becker: Todo detalhe me interessa, especialmente os domésticos, da casa. Nisso me irmano com Louise Glück e Adélia Prado – na verdade, com toda essa escola que se arroja para os rumos de uma plena acuidade dos sentidos: ver bem, ouvir bem, tatear tudo, até o ar. É preciso entrar “surdamente no reino das palavras”, lembra Drummond, e nesse sentido talvez caiba supor que esteja imersa na escrita também quando não estou escrevendo, quando outras coisas ocorrem no entorno. No tempo em que lavo louça ou troco os forros da cama.
Já no que diz respeito a um exercício próprio de linguagem, o que tento manter é certa disciplina diária. Quase todo dia escrevo, reescrevo, anoto. A passagem pela graduação em Filosofia (e especialização na mesma área, mais tarde) me levou a este compromisso inegociável com o rigor. Um cuidado mesmo com a palavra e o desenvolvimento de um projeto estético, de uma dicção, sabe? Se consigo dar conta disso, não sei. Mas há uma busca.
ON: Em muitos dos seus textos, o cenário é descrito de forma quase palpável. Podemos construir em cima da leitura, principalmente, a imagem do interior gaúcho, onde você nasceu e cresceu. Pode falar um pouco sobre a sua relação com o Rio Grande do Sul e de que forma ela se expressa nas suas palavras?
M.B.: Numa resenha que escreveu sobre “A mulher submersa”, Lucio Carvalho diz o seguinte: “Boa parte das pessoas, gaúchos inclusive, pensa na cultura do Rio Grande do Sul como uma cultura formatada em temas perenes e paisagens iridescentes e aconchegantes. O horizonte púrpura, crepuscular, a madrugada fria. Pouco se vê dos pátios, dos lugarzinhos, das gavetas dos móveis, das peças de roupa, das asperezas e dos gestos de pessoas que, muito ao contrário do que passa a imagem falastrona, dizem pouco, às vezes até desistem de dizer e se deixam viver, como se numa ciência tácita do próprio destino – e suas coisas [...]”.
Essa resenha, que saiu no Correio do Povo, trago-a aqui porque me parece traduzir com precisão a imagem de Sul que se revela na minha poética. Não aquele Rio Grande que assumimos (por hábito, muitas vezes) como rótulo. Não essa abordagem caricaturizante, que torna tudo plano e acaba perdendo a riqueza das nuances, das camadas. Minha paixão são os interditos e os interstícios das cenas de interior. São as paisagens, geralmente domésticas ou de bairro, ocupadas no mais das vezes pelos que dizem pouco e até renunciam ao dizer. Talvez nem paisagens sejam. Tão tênues, quase miragens.
ON: Em "A Mulher Submersa", ouvimos as vozes de diferentes gerações de mulheres e, nelas, podemos reconhecer uma espécie de passado feminino que é comum a todas. É você que escolhe dar voz a essas vivências ou são elas que se apoderam da sua escrita como forma de serem ouvidas?
M.B.: Sinto essa emergência de ouvirmos mulheres. De sermos ouvidas também a partir desse lugar que é o nosso, o de nascermos e nos fazermos mulheres, sobretudo num contexto tão hostil como o do atual tempo histórico no país. No mundo também. Não só eu sinto, muitas sentem. É uma demanda coletiva, sim – e por isso a literatura escrita por nós todas vem crescendo e os temas próprios ganham protagonismo.
Particularmente, vejo os limites entre o vivenciado e o ficcional como muito tênues, intercambiáveis. Borges tem um verso – num poema chamado “Elogio da sombra”, se não me engano – que fala de uma época da vida em que o real e o imaginado são o mesmo. Ambos “fluem por um manso declive / e se parecem com a eternidade”. Por isso não faz sentido que eu fale do meu percurso histórico como se ele fosse isolado dos demais percursos, de outras mulheres; nem cabe também tratá-lo como se fosse separado de tudo o que vivencio como corpo, imaginação e linguagem. A literatura é caminho para se ter onde borrar essas fronteiras entre os mundos.
Em relação à minha família, é preciso dizer que ela é formada por mulheres muito presentes. Minha mãe e minha irmã são parte central da genealogia da minha escrita. Daniel Faria diz que “as mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões”, e sinto que comigo as coisas se deram assim mesmo. A casa onde nasci e cresci foi um lugar continuamente aspirado e expirado por pulmões fêmeos; não havia entre os objetos nenhum que não fosse esculpido pelos ciclos de ar de mulheres. Não só mãe e irmã, também tias e uma avó – esta, que não cheguei a conhecer e da qual não tenho imagem ou qualquer outra memória, mas que se mantém em mim como ausência e suspensão.
ON: Li em uma entrevista que "A mulher submersa" é um livro que levou cerca de oito anos até ser composto e publicado. Você consegue perceber a passagem do tempo através do seu próprio trabalho?
M.B.: Sim, “A mulher submersa” veio sendo composto lentamente. Digo que é um livro alongado no tempo. Comecei com o caderno “As filhas, as mães, as avós” e fui terminar bem depois, com o “Caderno dos mortos”, que segue em processo, inclusive. Na verdade, todas as séries talvez sigam em trabalho em mim. Tenho algo de trabalho sem fim. Tudo vem vindo lentamente e vai sendo composto e recomposto sem pressa.
Penso que, sim, que é possível identificar – de um ponto ao outro – uma depuração no trato com a linguagem, na forma (coisa que vem com as leituras e o exercício de escrita), bem como a predileção por alguns temas. Acho interessante dizer que esse é um livro com muitos outros livros dentro. “Livro-boneca-russa”. Ou, melhor: “livros-bonecas-russas”, no plural, o que deixa claro que ele se faz de muitos centros, muitas camadas. Também gosto de pensá-lo como um “romance em poemas”, a expressão de uma proposta de dramaturgia íntima.
ON: Se pudesse escolher um trecho de um dos seus poemas como a porta pela qual um novo leitor teria o primeiro acesso ao seu trabalho, qual seria?
sou uma cidade submersa
quando à noite me deito contigo e me torno tua
pela manhã sou uma cidade submersa
porque é assim que amo, lendária e triste
porque não tenho outro corpo para amar - apenas este, onde não vinga nenhum fruto
nenhuma promessa
.
e quando pela manhã tu vais embora, e eu permaneço na cama, nua
quando a luz do sol começa a entrar pela janela e preenche o quarto
nessa hora o suor se reacende
o sal cintila em minhas coxas
e eu, estéril
eu então sou uma mulher estéril repleta de estrelas
de constelações
Esse é o poema que abre o livro. Penso que ele indicia em todos os demais poemas, do início ao fim, uma tonalidade que varia entre paixão e penumbra. Num sentido, "a mulher submersa" talvez seja uma espécie de fruto proscrito que vai queimando a frio nas mãos.