Legitimação feminina através da voz

“As arcanas”, coral passo-fundense formado estritamente por mulheres, defende a música como um espaço de visibilidade para temas ligados ao feminismo

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Cover de "P.U.T.A", da banda Mulamba, é o primeiro trabalho lançado pelas Arcanas (Foto: Reprodução)Cover de "P.U.T.A", da banda Mulamba, é o primeiro trabalho lançado pelas Arcanas (Foto: Reprodução)
Cover de "P.U.T.A", da banda Mulamba, é o primeiro trabalho lançado pelas Arcanas (Foto: Reprodução)
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Há temas sobre os quais somente determinados grupos sociais têm a capacidade de versar com a sinceridade de quem, de fato, vivenciou aquela realidade. A violência das ruas, o machismo e a desigualdade, por exemplo, podem até ser compreendidos por quem apenas observa essa realidade com certo distanciamento, no entanto, a percepção desses indivíduos parte de uma perspectiva diferente daqueles que sentiram na pele o peso dessas experiências. É por isso que o coral passo-fundense As Arcanas, criado em março de 2020, tomou a decisão de ser formado exclusivamente por artistas mulheres. No projeto, diferentes vozes femininas se unem para cantar sobre o que todas têm em comum, ainda que em recortes sociais diversos: a vida como mulher.

O nascimento do grupo não poderia ter acontecido de outra forma, dentro desse contexto. A arranjadora Mariana Bernardi, uma das principais responsáveis por tirar a ideia do papel, conta que As Arcanas surgiram quando, no início do ano passado, ela decidiu apresentar suas músicas autorais pela primeira vez, em um evento já tradicional na cena cultural de Passo Fundo: o “Ensaio Aberto da Toca do Ratão” que, naquela edição, ocorrida no Dia da Mulher, ganhou o apelido de “Toca das Ratonas” ao contar somente com apresentações de artistas mulheres. “Eu queria muito um coral feminino em uma das minhas músicas, então reuni as gurias e nos definimos como um coral de apoio para quando uma das integrantes precisasse. Não muito depois, já estávamos com a ideia de ser um coral autônomo”, conta.

As gurias, a quem Mariana se refere, são as coralistas Lavínia Mari, Paola Larréa, Amanda Nunes, Jaqueline Drum, Leticia Fumagalli, Kauanny Klein, Ana Zordan, Camila Potrich, Camila Sprandel, Julia Manfroi e Hélène Françoise. Juntas, elas lançaram o primeiro trabalho como um coral autônomo no último dia 22, com um cover da música “P.U.T.A”, da banda brasileira Mulamba. Não coincidentemente, o sexteto de rock e MPB, uma das principais influências do coral passo-fundense, também é formado apenas por mulheres e escreve músicas focadas em temáticas como a violência contra a mulher, o empoderamento feminino e a igualdade de gênero. Uma escolha que aconteceu “a dedo”, como descrevem as Arcanas.


Uma realidade comum

Em “P.U.T.A”, as letras narram um cotidiano comum à maioria das mulheres: o medo em andar sozinha pelas ruas, sob o risco de sofrer assédio e, até mesmo, abuso sexual ou feminicídio. Vivências que, mesmo tão corriqueiras, ainda tendem a ser desacreditadas e distorcidas até o ponto em que a culpa recai sobre a vítima. A provocação acontece desde as primeiras estrofes da canção: “Ontem desci no ponto ao meio dia, contramão me parecia/Na cabeça a mesma reza/Deus que não seja hoje o meu dia/Faço a prece e o passo aperta/Meu corpo é minha pressa”, “Ouviu-se um grito agudo engolido no centro da cidade/E na periferia? Quantas? Quem?”, “Por ser só mais uma guria/Quando a noite virar dia/Nem vai dar manchete”.

A coralista Letícia Fumagalli revela que a urgência do tema foi um dos fatores decisivos para a escolha dessa canção como o primeiro cover lançado pelas Arcanas. “Só no Brasil, sete mulheres são estupradas por hora. Esse é um número muito revoltante e é um tema que precisa ser lembrado e visto de diferentes perspectivas. Assim, aproveitamos esse viés mais artístico para passar uma mensagem realmente importante de união e inconformidade”, conta.

Responsável por criar o arranjo vocal para o cover, Mariana Bernardi explica como transformou o marcante instrumental da versão original de “P.U.T.A”, gravada por Mulamba, em elementos que pudessem ser cantados por um grupo vocal. “O que eu fiz foi, principalmente, trazer o máximo de elementos da música original para serem feitos pela voz, encontrar sílabas que fechassem bem com as notas tocadas pelos instrumentos, palavras-chave na letra para dar destaque e também acrescentar algumas ideias musicais que foram surgindo ao longo do processo, para dar um toque nosso ao cover”, explica.

A poderosa releitura feita pelo coral Arcanas, inteiramente a partir do uso da voz, conta ainda com um vídeo bastante forte visualmente, dirigido por Letícia. As artistas aparecem lado a lado, em imagens em preto-e-branco – que em alguns quadros ganham luminosidade e, em outros, apagam-se, seguindo o ritmo ditado pela vibração das vozes –, enquanto interpretam as letras de “P.U.T.A”. 


O poder da representatividade

Assim como a escolha da música não se dá ao acaso, as coralistas de As Arcanas elucidam que a formação estritamente feminina também não. Desde sempre o papel da mulher foi narrado ou visto através do homem. Hoje em dia temos a oportunidade de narrar a nossa história e ouvir mulheres falando sobre o que é ser mulher. Isso é extremamente importante pela representatividade, pela segurança, pelo afeto e simpatia”, opina Amanda Nunes.

Em consonância, a cantora Camila Potrich diz que a importância de projetos exclusivamente femininos também está em fazer com que outras mulheres se sintam acolhidas e vejam que não estão sozinhas. “Queremos mostrar que estamos aqui para dividir dores e não deixar nenhuma voz ser silenciada. Para algumas mulheres só é preciso de um empurrãozinho para se libertar das amarras da sociedade, queremos que nossas vozes ecoem e sejam ouvidas por elas”, complementa.

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