A resistência da arte circense por gerações

Impactados pela pandemia, a internet e o alto investimento em marketing, espetáculos sentem o distanciamento do público e o apagamento do circo tradicional

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Circo Vitória nasceu no município de Ernestina. (Foto: Isabel Gewehr/ON)Circo Vitória nasceu no município de Ernestina. (Foto: Isabel Gewehr/ON)
Circo Vitória nasceu no município de Ernestina. (Foto: Isabel Gewehr/ON)
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Quem circula na Avenida Brasil, nas proximidades do antigo silo da CESA, vê à distância bandeiras com as cores preto, vermelho e amarelo. O alemão, presente no sobrenome Arendt, é uma herança familiar da mãe, que se une a uma geração que há mais de 70 anos tem a arte do circo correndo por meio das tendas, fitas e cadeiras no entorno do palco. Todos, à espera de um espetáculo de música, teatro e diversão guiado pelo Circo Vitória. 

Foto: Isabel Gewehr/ON


Herança familiar 

Tendo como primeiro ponto de localização o município de Ernestina, a 34 km de Passo Fundo, o Circo Vitória surgiu com a união de Mara e Paulo Ricardo Arendt. Mara, filha de agricultores, e Paulo, de uma família que há 7 décadas tinha como a sobrevivência o circo. Com uma ligação quase que de vidas passadas, para um dos filhos do casal, Isaías, de 23 anos, as primeiras lembranças da infância eram os tradicionais passeios e férias passadas no colorido do circo do avô, que começou sua trajetória trabalhando como funcionário de outros circos, até conseguir montar o próprio. “Eu e meus irmãos estivemos a vida inteira no circo. Quando chegava as férias do colégio, a gente sempre ia pro circo do meu vô. A ligação é da vida inteira no circo”, conta o segundo de três filhos da família.

Acompanhando de perto o trabalho que era feito pelo seu pai, Paulo Roberto, junto com a esposa Mara, fundaram o Circo Vitória, que agora completa 10 anos. Entre cambalhotas, saltos em direção a luz e risos através da tinta, o grupo composto por 15 pessoas percorreu o Rio Grande do Sul inteiro com shows, até retornar mais uma vez a Passo Fundo, onde apresenta seu espetáculo até o próximo domingo (4).


Dificuldades permanentes 

Com números aéreos, acrobacias, malabarismos, personagens infantis, o tradicional palhaço e um musical que é a maior atração das noites abaixo da lona vermelha, a família Arendt vem a passos lentos após o período crítico da pandemia, com quase dois anos sem poder colocar os ônibus e trailers na estrada. “Nós sentimos em tudo. A gente ficou parado na cidade de Ipiranga do Sul e ficou 1 ano e 10 meses sem nenhum espetáculo. Nós fomos os primeiros a parar e os últimos a voltar”, conta Isaías. “Recebemos doações, fomos pra lavoura, fizemos solda, pintura. Foi um período muito difícil”.

As rasuras da pandemia, no entanto, agora se afastam para dar espaço à uma incerteza sobre o futuro da arte de fazer o circo. “O circo está morrendo e tem um novo modo de fazer o circo entrando”, relatou Moisés Arendt, primogênito da família. “O que temos é um modo visionário. Montam uma estrutura, chamam a atenção, investem em carros para chamar o público, mas quando chegam aqui, não tem literalmente nada”, completou.  

Com o dom ficando em segundo plano, a estratégia adotada por muitos circos tem sido vender a imagem de um espetáculo, mas não necessariamente investindo em um show de qualidade ao público. O que, na opinião da família Arendt, tem acabado com a imagem dos circos e obrigado muitos a adotar uma prática que valorize o marketing. “Porque o espetáculo em si, a gente já viu que não dá retorno e não compensa investir em um espetáculo bom. Não está trazendo as pessoas”, avaliou Yasmin Arendt, filha mais nova da família e que realiza espetáculos aéreos. “Então eles investem em um carro, um caminhão e deixam de lado o show”. Isso acaba resultando em públicos insatisfeitos, que não voltam ao circo por uma primeira impressão ruim. 


Recursos limitados 

Uma das táticas adotadas para a resistência de um modelo mais tradicional e o resgate da essência do circo, é a ida a municípios do interior, em que a concorrência não é tão grande e o “boca a boca” acaba atraindo o público. “Queríamos unir o útil ao agradável. Ter uma estrutura boa, que chame as pessoas, mas não pecar no espetáculo, porque dá para fazer isso”, pondera Yasmin. “Mas é muito difícil inovar com falta de recursos. É quase impossível”. Além disso, levar um espetáculo a uma cidade que tenha entre 2 a 3 mil habitantes, acaba se tornando um prejuízo, visto que só uma pequena parcela da população comparece aos shows regularmente. 

Sem auxílio ou benefício algum do governo, a classe dos artistas de circo sustenta com os lucros dos espetáculos os custos com água, luz, bombeiros, Prefeitura e o aluguel do terreno, que em Passo Fundo teve o valor de R$ 7 mil. Quando se trata de recursos, a esperança da família se direciona em um incentivo maior à cultura no próximo Governo, que seja voltado especialmente a categoria. “Os editais saem, mas são divididos em diversas formas de cultura e nós somos um pouco de tudo. Música, teatro, cinema. Às vezes conseguimos encaixar para o teatro, mas é difícil conseguirmos algo”, explicou Yasmin, ressaltando que os próprios colegas de circo não conseguem se unir em busca de incentivos e apesar de possuírem uma associação que reúna a todos, eles não possuem voz ativa.


Um público distante dos palcos 

Com cerca de 20 circos ativos em todo o Rio Grande do Sul, o público que frequenta as tendas também tem se alterado. Sem a presença de jovens, são pais e avós que agora trazem as crianças, tentando de algum modo resgatar e criar conexões com os programas que participavam na infância. “O circo é uma coisa de geração. Se você se acostumou a ir com seus pais, você vai levar os teus filhos no circo, e ele vai levar os filhos dele. Então se você nunca foi ao circo, como vai ir ou levar alguém?”, refletiu toda a família. “E as crianças perderam bastante o interesse no circo. Algumas vêm e ficam o espetáculo inteiro no celular”.

Com a ascensão do celular e o uso de tecnologias, um aliado e uma nova concorrência surgiram para o mundo dos circos. De um lado, o auxílio na divulgação dos espetáculos pelas redes sociais, do outro, a existência de milhares de espetáculos disponíveis na palma da mão. “Você tem na internet todos os espetáculos do mundo e não precisa ir até o circo. É uma concorrência que não existia antes”, ponderou Moisés Arendt. “Sentimos que quanto mais digitalizado as coisas são, mais vai se perdendo. Está nos roubando o espaço”.

Foto: Isabel Gewehr/ON


Laços fortalecidos 

Entre dificuldades para a permanência do circo, a família permanece unida carregando o mesmo amor pelo que fazem por gerações. “Todos os dias refletimos, buscando soluções para esses problemas. Mas esse é um laço forte e até a própria dificuldade nos faz um pouco mais fortes. Buscamos algo a mais, uma fonte, para crescermos juntos”, conta Moisés. “Estamos unidos porque é algo da família e porque a gente gosta. Se não, já teríamos desistido. Sentimos orgulho”, completa Yasmin. “E coisas boas são todos os dias. Cada dia é uma alegria aqui no Circo Vitória”, diz com orgulho Isaías. 

Foto: Isabel Gewehr/ON


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