Mesmo que o trigo venha perdendo espaço para a lavoura de soja no Rio Grande do Sul, o cereal de inverno ainda continua fundamental para garantir a competitividade da agricultura gaúcha. “Não há alternativa, que tenha a importância do trigo, para ocupar as nossas áreas de lavoura no inverno. Não podemos abrir mão dos cultivos de inverno. Pousio no inverno e soja no verão não tem sustentabilidade.” A afirmação foi feita pelo pesquisador da Embrapa Trigo, Gilberto Cunha, nesta entrevista concedida ao Caderno Gestão S.A, especial Agro é o Negócio. Cunha, que é pesquisador da Embrapa desde 1989, conta a história desta instituição que vai muito além dos seus 46 anos, desde 28 de outubro de 1974, data que marca a inauguração oficial do Centro Nacional de Pesquisa de Trigo, a Embrapa Trigo. Nessa entrevista, Gilberto Cunha fala sobre as raízes da Embrapa Trigo, quais as razões de nossa cidade ter sido escolhida para sediar a primeira unidade de pesquisa descentralizada da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, por que o trigo de protagonista virou coadjuvante da soja, qual a realidade e o futuro possível para esse cereal na nossa agricultura e o que, historicamente, representou e ainda representa a Embrapa Trigo para o desenvolvimento social e econômico de Passo Fundo e região.
O pesquisador, foi Chefe-Geral do Centro Nacional de Pesquisa de Trigo, entre 2006 e 2010. É colunista de O Nacional desde 1995. Escritor e atual presidente da Academia Passo-Fundese de Letras.
O Nacional – O que motivou a escolha de Passo Fundo como a cidade que sediaria a Embrapa Trigo?
Cunha – Essa é uma longa história. Para o seu entendimento, precisamos remontar aos anos 1930, quando, no governo Getúlio Vargas, houve um plano de expansão da pesquisa agrícola no País, com a criação de diversas estações experimentais pelo Governo Federal, e Passo Fundo foi o município escolhido para sediar a Estação Experimental do Trigo. Essas são as raízes da Embrapa Trigo. Foi com a finalidade de incentivar o cultivo de trigo no Brasil, que o Governo Federal, via a lei n.º 470, de 9 de agosto de 1937, criou a “Estação Experimental de Passo Fundo”. Este estabelecimento começou a funcionar em 1939, sendo inaugurado pelo presidente Getúlio Vargas, em 22 de novembro de 1940, cuja placa alusiva à data denominou-a de “Estação Experimental de Trigo”. A sede dessa estação ficava no distrito de Engenheiro Luiz Englert (hoje pertencente ao município de Sertão), em cujo local, atualmente, funciona o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus Sertão. Devido às limitações de localização e, especialmente, com o deslocamento das lavouras de trigo das áreas de mata para áreas de campo, em 1969, com a aquisição de uma área de 300 ha, esta estação experimental seria transferida para os arredores da cidade de Passo Fundo. Surgia aí, inaugurada em 1972, a “Nova Estação Experimental de Passo Fundo”, cujas instalações, localizadas às margens da Rodovia BR 285, km 294, serviriam para sediar, a partir de 28 de outubro de 1974, o Centro Nacional de Pesquisa de Trigo (CNPT). Após a criação da Embrapa, que foi formalmente instalada em 26 de abril de 1973, deu-se a organização dos centros nacionais de pesquisa por produtos, temáticos e ecos-regionais. E entre os produtos considerados importantes para o desenvolvimento do País, mais uma vez, estava o trigo. Foi designado um grupo de trabalho para preparar o anteprojeto de implantação do Centro Nacional de Pesquisa de Trigo (CNPT). O grupo de trabalho cogitou três locais para sediar esse centro de pesquisa: Ponta Grossa, Cruz Alta e Passo Fundo. Após uma série de entrevistas com técnicos que trabalhavam com trigo, a cidade de Passo Fundo foi definida como sede do Centro Nacional de Pesquisa de Trigo. E, em 28 de outubro de 1974, com a “missão de executar e coordenar as atividades de pesquisa em todas as regiões tritícolas do país, objetivando aumentar a produção nacional de trigo”, houve a inauguração do CNPT, 1ª Unidade Descentralizada da Embrapa, com a presença do então presidente da república, General Ernesto Geisel.
ON – E o que a instalação da Embrapa Trigo em Passo Fundo representou e de que forma beneficiou a região?
Cunha – A Embrapa Trigo nunca reivindicou o reconhecimento, até pela sua missão como organização pública, mas, indubitavelmente, promoveu ou inspirou iniciativas que foram e são propulsoras do desenvolvimento social e econômico de Passo Fundo e região. São muitas as marcas da Embrapa nessas inciativas e eu, sem querer ser laudatório, apenas citaria que, desde a sua criação, esse centro de pesquisa catalisou forças em prol do desenvolvimento da agricultura brasileira a partir da inovação tecnológica. Nesse sentido, participou ativamente para promover o desenvolvimento de empresas de sementes na região, que contaram com o apoio do Serviço de Produção de Sementes Básicas (SPSB) da Embrapa e da APASSUL, ajudando na consolidação do Rio Grande do Sul como um estado líder no segmento de produção de sementes no Brasil. Também trabalhou ativamente para promover em Passo Fundo um polo industrial na área de mecanização agrícola para o Sistema Plantio Direto.
ON – Então se pode dizer que a presença da Embrapa em Passo Fundo ajudou a consolidar a imagem do município como uma referencia na área de ciência, tecnologia e inovação para agricultura?
Cunha – Sem qualquer margem para dúvidas. Especialmente em melhoramento genético vegetal, ajudou a construir a imagem de Passo Fundo como município referência por sediar, além da Embrapa, empresas que são elites no setor. Empresas de reconhecido sucesso em trigo, como a OR Sementes e a Biotrigo Genética, por exemplo, cujas sedes são em Passo Fundo, de alguma forma, por intermédio do pesquisador Ottoni de Sousa Rosa, primeiro Chefe-Geral do Centro Nacional de Pesquisa de Trigo e fundador da OR Sementes, tiveram a influência da Embrapa nas suas raízes. Idem o programa de melhoramento genético de aveia na UFF, que começou na Embrapa e, depois, passou a ser magistralmente conduzido na UPF pelo Prof. Elmar Floss, a partir 1977. E, se hoje Passo Fundo é reconhecido por abrigar diversas instituições de ensino superior e seus programas de pós-graduação, vale lembrar que a origem do primeiro curso de pós-graduação stricto sensu, nível de mestrado, em Passo Fundo, foi o Programa de Pós-Graduação em Agronomia – Área de Concentração em Fitopatologia, que efetivamente iniciou em 4 de março de 1996 e somente foi viabilizado graças a parceria entre a Universidade de Passo Fundo e o Centro Nacional de Pesquisa de Trigo – Embrapa.
ON – Quais fatores podem ter contribuído para que o trigo, antes a principal cultura da região Sul, perdesse espaço para a soja?
Cunha – Essa é uma realidade que se consolidou, paulatinamente, nos últimos 50 anos. No que diz respeito a grãos, até os anos 1960, os dois principais cultivos, no Rio Grande do Sul, eram o trigo, nas chamadas áreas de mata, e o arroz irrigado, nas terras baixas ou várzeas. Evidentemente, em menor escala, havia milho, feijão e outros cultivos. Mas, se tivermos que definir uma cultura como a mais importante na região Sul do Brasil, no passado, indubitavelmente, essa era o trigo. O trigo gozava de incentivos governamentais para promover a produção desse cereal no País. De certa forma, impulsionou o desenvolvimento das principais cooperativas agrícolas, justificando porque, até bem pouco tempo, a maioria delas trazia a palavra tritícola no nome. Passo Fundo, por exemplo, viveu os tempos áureos da Coopasso - Cooperativa Tritícola Passo Fundo Ltda., que teve falência decretada nos anos 1990. E, sem dúvida, a política de incentivo ao trigo, também favoreceu a consolidação da soja, via a dobradinha trigo no inverno e soja no verão. Mas, com o passar do tempo, o trigo foi perdendo protagonismo nas nossas estruturas de produção e, especialmente, por uma questão de mercado e de retorno econômico aos produtores, a soja foi se consolidando como a principal e mais importante alternativa, tanto no Rio Grande do Sul como em outros estados do Brasil.
ON – É possível dizermos quando de fato começou a produção de soja no Rio Grande do Sul e como essa cultura atingiu a posição de destaque que hoje ocupa no Brasil? E o trigo, como esse cereal está ligado à história da soja no País?
Cunha – As primeiras experiências com a soja no Estado remontam ao começo do século XX, tendo sido realizadas pelos antigos Liceu Rio-Grandense de Agronomia e Universidade Técnica de Porto Alegre, que são os embriões da atual Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E merece especial menção o primeiro cultivo dito comercial, em 1914, e a pesquisa realizada, em 1921, na Estação de Agricultura e Criação, ambos em Santa Rosa, quando as sementes multiplicadas naquela Estação foram distribuídas para os agricultores da região. É em razão disso que Santa Rosa se alça ao título de berço da soja no Brasil, incluindo-se também, ter havido, nesse município, a instalação da primeira indústria processadora de soja do País, em 1949. A pesquisa com essa oleaginosa foi retomada nos anos 1930 e ela começou, efetivamente, a aparecer nas estatísticas agrícolas do Estado a partir de 1941. Até os anos 1950, a soja era usada exclusivamente para a alimentação animal, especialmente de suínos e gado leiteiro. Nos anos 1960, o Rio Grande do Sul ainda era o único estado brasileiro produtor de soja. A partir dessa década, no rastro dos programas de incentivo à produção de trigo no Brasil, a soja também se beneficiou, via a sucessão de cultivos, trigo no inverno e soja no verão. Mas, ao longo do tempo, especialmente a partir dos anos 1970 e 1980, a soja se descolou do trigo, impulsionada pela demanda do mercado mundial e pelos preços atrativos, em função de frustrações de safras de grãos em alguns países, a substituição do uso de gorduras animais por óleos vegetais e, especialmente, pela inovação tecnológica na área de genética e de manejo de solo e práticas culturais. A chamada tropicalização da soja, que ocorreu no Brasil, possibilitou a expansão dessa cultura para além dos limites da Região Sul, não raro levada por agricultores sulinos migrantes para o Centro-Oeste e Norte do País. Eis o caminho trilhado pela soja até chegarmos à posição atual que o Brasil ocupa no grupo de elite dos países produtores e exportadores de soja no mundo.
ON – Em uma análise geral, hoje, qual é a realidade da triticultura para o Estado? E o que pode ser projetado para os próximos anos?
Cunha – A realidade, mesmo que muito diferente de quando o trigo reinava absoluto nos nossos campos, denota que esse cereal ainda continua sendo fundamental para garantir a competitividade da agricultura gaúcha. Não há alternativa, que tenha a importância do trigo, para ocupar as nossas áreas de lavoura no inverno. Não podemos abrir mão dos cultivos de inverno. Pousio no inverno e soja no verão não tem sustentabilidade. E o trigo, mesmo que existam alternativas, em escala econômica, é a mais importante. Em 2020, foram mais de 900 mil ha plantadas com trigo no Rio Grande do Sul. Além de agregar renda numa estação de poucas opções, o trigo, indiretamente, facilita os cultivos subsequentes de verão, seja pela cobertura do solo que proporciona no inverno, pelo resíduo de nutrientes deixado ou por facilitar o manejo de plantas daninhas. Em resumo, o trigo é fundamental por agregar renda e diluir os custos fixos dos empreendimentos rurais. Todavia, a produção de trigo, na nossa visão, deve ser cada vez mais profissionalizada, com lavouras sistematicamente acompanhadas por assistentes técnicos que coloquem o melhor da tecnologia a serviço dos agricultores. A orientação de custos de produção e de rentabilidade buscada tem de seguir os ditames do mercado internacional. É dessa forma que, com fundamentação na tecnologia e na inovação, poderemos, de fato, vislumbrar a construção de uma nova triticultura, gaúcha ou brasileira, que seja competitiva e sustentável.