"Querem as mulheres no futebol, mas não querem investir para ter mulheres no futebol"

Depois que atletas de futebol de campo e futsal romperam a barreira do preconceito no esporte, encontraram na falta de incentivo um desafio ainda maior para alavancar carreira

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Fabiola Sampaio Lui Sputza. a Binha, foi a idealizadora das Soberanas de Salto Crédito: Fabiola Sampaio Lui Sputza. a Binha, foi a idealizadora das Soberanas de Salto Crédito:
Fabiola Sampaio Lui Sputza. a Binha, foi a idealizadora das Soberanas de Salto Crédito:
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Lusa Stein não sabe dizer quantas vezes ouviu que aquilo era coisa de guri. "Me criei rodeada com os piá. Jogando na rua. De colocar chinelo, litro, para fazer de gol. Minha mãe ainda dizia: se voltar machucada vai apanhar!", e ri, lembrando­-se da infância cruzada com a paixão pelo fute­bol. Entre os sete e os oito anos, Lusa, também chamada de Loira pelos amigos e amigas, já esta­va matriculada em uma escolinha, mas não pode dar vazão ao sonho de ser uma atleta profissional quando encontrou a maternidade e as responsa­bilidades que vieram com ela. "Aí me afastei um pouco do sonho de voar alto. Mas mantenho isso vivo incentivando outras meninas a voarem."

 

Loira é representante comercial e tem 28 anos. Ela e a amiga Fabiola Sampaio Lui Sputza, a Binha, de 29 anos, estão à frente de um time de futsal, "Soberanas de Salto", nascido em junho de 2016 no bairro Bom Jesus, em Passo Fundo. Diante da Copa do Mundo Fifa de Futebol Feminino, que começou ontem, elas assistem à máxima repre­sentação de onde mulheres no esporte podem chegar, ao mesmo tempo em que compartilham a dificuldade de ascensão dentro de uma modali­dade que ainda não recebe os mesmos incentivos na modalidade feminina que na masculina. "Nin­guém quer apoiar", dispara Binha.

 

As Soberanas surgiram com Binha, que recen­temente se tornou mãe pela terceira vez, sem deixar de ir às quadras para acompanhar os jo­gos das amigas mesmo dois dias antes do nasci­mento da bebê. Na época, ela, que compartilhava dos mesmos gostos de "coisa de guri" que Lusa teve durante a infância, conversou com uma vi­zinha, "dona" de outro time feminino, as "Divas", e foi motivada a buscar gurias para também mon­tar uma equipe.

 

"Começou como uma coisa de bairro, entre amigas, irmãs... mas a coisa foi ficando mais sé­ria quando começamos a disputar campeonatos. Era para brincarmos, porém no fundo já tínha­mos a intenção de crescer. Criamos torneios e de repente estávamos treinando toda semana", conta Binha, sentada em uma cadeira, abaixo dos 22 troféus conquistados em campeonatos postos no alto de uma prateleira em uma das paredes da sala de sua casa.

 

Lusa entrou na equipe poucos meses após sua criação. Desde então recorda-se de jogos dispu­tados em Passo Fundo, Tapejara, Carazinho, Ere­chim, São Miguel do Oeste/SC, Chapecó e da luta para manter vivo o futsal na comunidade. Hoje as Soberanas têm uma equipe fixa de cin­co mulheres, mas no passado o número chegou a ser maior. Binha se lembra que a equipe chegou a ter dois times a serem inscritos em campeonatos. Um era o oficial, o outro, formado por garotas que não participavam ativamente dos treinos, ou que ficavam de fora de outras equipes. Ela não chama de time reserva, pois assegura que a esta equipe também eram dadas todas as oportunidades.

 

Mãe de quadra

É que Binha carrega consigo uma preocupação natu­ral em incluir todas as garotas na equipe. Loira assegu­ra: "Ela é a mãe de todo mundo". Mãe de quadra. Como os treinos aconteciam nas terças e quartas-feiras à noi­te (hoje só acontecem às quartas) no Barracão, um gi­násio próximo a uma igreja do bairro, ela e o marido Luciano Spitza, de 28 anos, técnico das Soberanas, comprometiam-se em buscar e levar para casa as garotas menores de idade para que não voltassem sozinhas.

 

Mesmo as que não possuíam R$ 3 para ajudar a inteirar o valor total do aluguel do giná­sio por hora de treino, o casal abraçava. "As vezes a gente tira do bolso. Em outros já dei adesivos de unha, que faço para vender, para as meninas venderem", compartilha. Bi­nha não pedia algum retorno do valor dos adesivos. Indire­tamente era como se estivesse pagando para que as meninas não desistissem do esporte por falta de recursos - ainda que ela sobreviva com a renda de uma funcionária de restauran­te e o marido, de marceneiro. "E teve uma menina", compartilha Loira, "que nem chuteira tinha. Ela jogou um treino e um torneio. Não tinha para pagar, mas ela jogava!"

 

A adolescente de 14 anos, lembrada com carinho pelas amigas, era uma garota quieta e tímida que en­contrava a liberdade com uma bola nos pés. Ainda que sem dinheiro para arcar com materiais básicos para praticar o esporte ou conseguir custear a ida a torneios e aluguel do ginásio, foi abraçada pelas Soberanas de Salto que lhe presentearam com chuteiras, uniformes e, ao completar 15 anos, com uma festa de aniversário surpresa. "Junto com os irmãos dela pegamos um espaço e manda­mos fazer um bolo com o desenho de um campo de futebol. Hoje ela foi chamada para a Liga Gaúcha", conta Loira, com um largo sorriso, como que vendo seu sonho de voar ser realizado na adolescente.

 

A menina não foi a única. Para driblar o constante problema da falta de recursos, as Soberanas uniram-se mais de uma vez para encabeçar iniciativas que lhes permitissem arcar com a manu­tenção da equipe. "E geralmen­te são valores que entram para já sair", pontua o técnico Spitza. Foram rifas, cachorros-quentes e torneios criados pela própria equipe a fim de que pudessem re­verter em investimentos na par­ticipação de outros campeonatos. No final do ano passado a equipe conseguiu cerca de R$ 500 com um jogo beneficente. Mas nesta ocasião as Soberanas não ficaram com o dinheiro. Todo o valor foi transformado em doces e brinquedos, doados à crianças da comunidade. "Mas a gente sonha", desabafa Spitza. "Sonha com uma sede própria, com poder remunerar as atletas, ter escolinha de base, poder viajar o mundo", sendo interrompido por Loira: "poder fazer só isso" - com uma sutil ênfase na palavra "só".

 

Binha, Loira e Spitza contam que já tentaram patro­cínio. Que levaram calote. Que ouviram o "já apoiamos o masculino". Mas que também não conseguem deixar o sonho parar aí. "Querem as mulheres no campo, mas não querem investir para ter mulheres no campo", fri­sa Spitza. "Hoje há pouco apoio. Só que se a gente lar­gar de mão isso vai acabar se perdendo."

 

"Não conseguia ver futebol como profissão"

Leticia Bongiorno, de 32 anos, desistiu da carreira de atleta ao se deparar com os rasos incentivos. Embora tivesse na família o apoio para seguir, não encontrou, mesmo dentro de um clube, o retorno suficiente para fazer do futebol, profissão. "Não conseguia ver o fute­bol como profissão, como meu sustento. Convivia com inúmeras meninas, aonde a mais nova era eu, e mulhe­res de quase 40 anos que dali tiraram seu sustento, que faziam da ajuda de custo o seu salário. Não queria isso para mim e voltei pra estudar e buscar `um emprego de verdade: Mas claro, estamos falando de 15 anos atrás:' Nessa época, Letícia havia sido chamada de Passo Fundo para integrar a equipe feminina do Grêmio, time que permanecer dos 12 aos 16 anos. Antes, seu primeiro campeonato havia sido com nove anos, na ci­dade. A lembrança lhe faz rir diante do que poderia ter sido seu primeiro e último torneio.

 

Diante da bola, em uma cobrança de pênalti, Letícia chutou a ponto da bola nem chegar ao gol . "Ali aprendi que não precisa de força, mas jeito", conta. Crescida com uma bola embaixo do braço ao acom­panhar os jogos de seu pai, é que ela começou a prati­car o esporte. Jogava com os meninos do lado de fora da quadra, até ela ser liberada por seu pai e amigos e ser invadia por ela. Ela foi matriculada em uma escolinha e levada pelo treinador a fazer um teste no Grêmio. Com 12 anos, ela se via realizando um sonho de chegar a um grande time e experimentar viver, desde cedo, longe da famí­lia, mas lado a lado a uma paixão. Embora tenha deixado a carreira para buscar segu­rança profissional, nunca se afastou de todo do espor­te.

 

Em Passo Fundo, ela é capitã e representante da equipe Juventus, criada em 2015 entre amigas que que­riam jogar futsal. Como grupo ela coleciona diversos troféus, que consigo trazem histórias de vitórias em, campeonatos disputados pelo estado. "Somos o atu­al 2º lugar dos Jogos Interregionais do Rio Grande do Sul (JIRGS), onde defendemos a cidade de Passo Fundo com muito ímpeto", frisa. "Somos o único time femini­no da nossa cidade com CNPJ, com o qual buscamos apoio da Lei de Incentivo ao Esporte para cada vez conseguirmos aumentar a demanda de regiões dispu­tadas, assim como auxílio, patrocínios e apoiadores." Letícia também atua em uma escolinha criada no ano passado no município de Aratiba e que em 2019 criou uma filial em Passo Fundo, onde ensina de forma gra­tuita a meninos e meninas as técnicas que os levem ao desenvolvimento no esporte.

 

Por ter deixado a carreira de jogadora diante de recursos ínfimos é que ela aponta, de forma indireta ao que viveu, a ânsia por investimento nas mulheres em quadras e campos. "E é isso que precisamos: de oportunidades, de mostrar que é possível, de buscar apoios e incentivos para melhorar a qualidade do nosso esporte. Não podemos nos basear pelo esporte masculino. Homens são mais fortes, mais ágeis... claro que muda! Mas a tática, a técnica, o espírito de entrega e competitividade sempre vão prevalecer. Vamos olhar pelo avanço, pela busca de algo melhor, por ter atletas crianças com ídolos femininos também, o que é um passo incentivador para que elas possam praticar o esporte que elas gostam sem o preconceito, em liberdade, e por gostar da prática, da brincadeira futebol. Se serão profissionais ou não no futuro, não tem como saber. Mas oportunizá-las à prática com qualidade e estrutura seria o fundamental", defende.

 

"Chegar onde estou e poder acompanhara evolução do futebol feminino é muito gratIficante"

Na contramão de sonhos interrompidos por barreiras que vão de ordem financeira a apoio e oportunidades, Mylena Gomes Pedroso, de 20 anos, se diz grata por ter chegado aonde chegou. Natural de Passo Fundo, deixou a cidade aos 13 anos, quando ingressou no time feminino Rovani, da cidade de Tapejara. Como uma história que parece se repetir em to­das as garotas que ainda na infância começam a sonhar com o esporte, Mylena também foi acolhida pela família, mas rechaçada por colegas quando a viram em uma "brincadeira de guri".

 

Aos cinco anos ela foi matriculada na escolinha do Clube Recreativo Juvenil. Por não ter um time feminino, ela treinava com os meninos, que não gostavam da ideia de ter uma garota treinando com eles. Foi com a defesa de um professor, que disse que "todos eram iguais e estavam em busca de um sonho", que os ânimos foram acalmados. "Alguns anos se passaram e comecei a jogar as competições juntamente com os meninos, até que, certo dia, na final de um campeonato, um professor entrou com um recurso dizendo que meninas não poderiam jogar com meninos, gerando uma pauta que durou algumas semanas e a decisão foi que eu pude sim jogar a partida': recorda-se.

 

Sem dúvidas, Mylena se jogou no esporte e depois de Tapejara viveu uma ascensão meteórica, passando pelo Kindermann, de Caçador/SC - conquistando a Taça Brasil sub20, Coisa do Brasil, Sul Americano Escolar, campeonatos estaduais e rece­ber convocações para a seleção subl5 e subl7 -, Cri­ciúma/SC, até, em 2017, jogar uma partida contra o Sport Club Internacional pela Taça Encantado e ser chamada para a equipe gaúcha, coma qual ganhou o Campeonato Gaúcho e foi eleita a melhor jogado­ra do campeonato.

 

"É um sentimento de extrema felicidade poder representar um time gigante como o Internacional. Com a questão de preconceito, financeira e pouca estrutura na maioria dos clubes atuantes devido à falta de investimento, chegar onde estou e poder acompanhara evolução do futebol feminino é mui­to gratificante, pois este esporte merece ser reco­nhecido com o seu devido valor': frisa, como que deixando uma mensagem para que meninas não desistam e que os olhos, que agora se voltam para a Copa do Mundo feminina transmitida por uma TV aberta de grande alcance, reconheçam que é tempo de reparar a distância que se teve do esporte mas­culino de maneira emergencial.

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