Grande parte dos profissionais da saúde baseiam suas noções de normalidade e anormalidade em manuais médico-psiquiátricos, especialmente o Manual Diagnóstico de Doenças Mentais (DSM) e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Por serem atingidos pelo estigma de pecado, imoralidade ou anormalidade, as vivências de pessoas que fazem parte das chamadas ‘minorias sexuais e de gênero’ sempre estiveram catalogadas nesses manuais.
Para a Psiquiatria, a homossexualidade e a travestilidade eram consideradas como transtornos da personalidade sociopática, classificadas como desvios sexuais na primeira versão do DSM (American Psychiatric Association, 1952). A homossexualidade foi retirada da classificação de doenças mentais na segunda versão do DSM (American Psychiatric Association, 1973), após pressões de movimentos sociais. No entanto, os diagnósticos de gênero continuavam sendo reclassificados a cada edição do manual, como ‘transexualismo’ e ‘disforia de gênero’ (DSM-III; American Psychiatric Association, 1980), ‘transtorno de identidade de gênero’ (DSM-IV; American Psychiatric Association, 1994) e novamente ‘disforia de gênero’ na quinta e última versão (American Psychiatric Association, 2013).
O mesmo aconteceu na CID. O termo ‘homossexualismo’ foi retirado da décima versão, em 1990 (Organização Mundial da Saúde, 1997). Diagnósticos de gênero aparecem na oitava versão, com o termo ‘travestismo’ considerado um desvio sexual (Organização Mundial da Saúde, 1965). O termo ‘transexualismo’ surge em seguida, na nona versão do manual (Organização Mundial da Saúde, 1975) e é mantido na CID-10, no qual são incluídos ‘travestismo bivalente’ e ‘transtornos de identidade de gênero’.
Para o professor do Curso de Psicologia da IMED, Icaro Bonamigo Gaspodini, que desenvolve estudos e atua nas áreas de diversidade sexual e de gênero, preconceito, discriminação e violência conjugal em relacionamentos LGBTQ, a decisão da OMS de retirar a transexualidade da CID é um imenso avanço na garantia de direitos civis de pessoas trans. “Na última década, movimentos sociais e produções científicas em todo o mundo sustentam que todas as orientações sexuais e todas as expressões de gênero são manifestações da diversidade humana e não patologias ou transtornos mentais. O sofrimento de uma pessoa trans não advém do fato de ela ser trans, mas do fato de viver em uma sociedade transfóbica. Em minha opinião, trata-se de uma notícia que traz muita esperança de mudança em tempos de retrocessos sombrios relacionados aos direitos humanos”, comenta.
Para o Coordenador do Curso de Medicina da IMED, Luiz Arthur Rosa Filho é um avanço não tratar mais o transexualíssimo como doença, pois é um reconhecimento tardio de que sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual são diferentes situações dentro do nosso processo civilizatório. “Imagino que seja um passo importante da Ciência da Saúde para reduzir estigmas e preconceitos que tanto mal à saúde fazem, tanto para as vítimas quanto para quem carrega tais distorções. Passo Fundo conta com um serviço para atender esta demanda e em breve os alunos da Medicina da IMED estarão ampliando seus conhecimentos”, explica.
“Na sétima série me revelei e fui para a escola de mini saia e com muita maquiagem”
Uma das primeiras transexuais de Passo Fundo hoje mora no estado americano da Flórida, na cidade de Naples. Há mais de 20 anos ela submeteu-se à cirurgia de redesignação sexual. Pelo Facebook, aceitou conversar com a equipe de Comunicação da IMED, e faz um relato emocionante sobre os desafios que teve que enfrentar quando ainda era criança.
“Eu comecei a tomar hormônios escondido aos 12 anos. Eu não aceitava que me considerassem homem afeminado, nem homossexual. No meu tempo isso era algo novo, portanto, nem eu sabia como isso funcionaria socialmente. Achei que era a única no mundo. Cheguei a apanhar na escola porque tratavam isso como uma opção promíscua. Eu não ia em nenhum banheiro, raras vezes que pedi licença para a professora meus colegas iam para a porta para ver qual banheiro eu entrava. Na sétima série me revelei e fui para a escola de mini saia e com muita maquiagem. Eles não sabiam como agir, se sentiam embaraçados. Foi a partir desse momento que eu parei de responder pelo meu nome de nascença e introduzi de forma definitiva em minha vida meu nome escolhido. Achavam que eu era hermafrodita. Comparavam meu caso ao da Roberta Close. Com o tempo, passei a ser respeitada e apreciada como uma mulher livre. Antes disso, me tratavam como uma doente curável, sendo que a cura seria apanhar até virar homem. Não entendiam que a auto percepção humana é algo natural ou também causada por trauma de abuso. No meu caso, eu simplesmente desenvolvi de forma natural. Graças a Deus minha infância foi maravilhosa em todos aspectos. Porém, no meio disso, meu comportamento foi a chave para tudo. Eu dizia algo como "eu te entendo e respeito”. Percebi que baixaram a guarda e as armas. A partir daí, nunca mais senti preconceito. Inclusive, em toda área militar tive apoio, pelo fato que metade da minha família trabalhava na Brigada.
Quanto à retirada da transexualidade da CID, eu fiquei com o pé atrás, porque muitas pessoas que precisam da redesignação sexual não poderiam mais fazer o procedimento cirúrgico pelo sistema público, pois o Conselho Federal de Medicina não teria mais argumento para manter o programa. Sei que parece tendencioso e conveniente, mas se trata de saúde pública e não de um fetiche, até porque já era possível conseguir a documentação após a adequação sexual. Fico feliz que não seja mais uma doença e que o sistema ainda continuará servindo essas pessoas. Eu tenho consciência desde sempre de que não era e não sou doente! A única forma de aceitar como doença seria o fato de entender que a cirurgia seria a cura e não um reforço psiquiátrico de conversão. O que me dá medo é o índice de suicídios e arrependimentos. Por isso discordo do fato de que qualquer pessoa possa fazer a intervenção cirúrgica sem tratamento prévio”. Duda
“Toda a pessoa tem direito à vida e à liberdade”
A citação acima é o artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos que foi aprovada pela 3ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948. Setenta anos se passaram e somente agora, em 2018, uma parte da população passa a usufruir do seu “direito à vida e à liberdade” ao ter reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que sua condição não se trata de transtorno mental e tampouco doença. Até então, as pessoas que não se identificavam com o sexo que lhes foi atribuído ao nascer constavam na Classificação Internacional de Doenças (CID) como doentes mentais. A partir da nova posição da OMS, as identidades trans passam a ser diagnosticadas como incongruência de gênero, uma condição relativa à saúde sexual.
A professora do curso de Direito da IMED, Tássia Gervasoni, destaca que essa é uma reivindicação antiga das entidades LGBTI, para que a transexualidade saísse do compartimento das doenças mentais e entrasse no de comportamentos sexuais, o que agora foi finalmente efetivado. “A mudança, contudo, mantém a transexualidade dentro da classificação para que uma pessoa possa obter ajuda médica se assim desejar, já que a presença nessa classificação é condição para reembolso do tratamento em muitos países”, explica a professora.
Em março deste ano, no julgamento da ADI 4.275 e do RE 670.422, o Supremo Tribunal Federal decidiu que é direito de todo cidadão escolher como deseja ser chamado, como condição de respeito à dignidade humana. Tássia comenta que a decisão foi unânime ao reconhecer que pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que seja necessário se submeterem a cirurgia. “Com essa decisão, as pessoas que quiserem alterar nome podem se dirigir diretamente a um cartório e solicitar a mudança, sem a necessidade de realizar cirurgia de redesignação sexual, obter autorização judicial ou apresentação de laudo médico”, explica.
O principal argumento da decisão do Supremo Tribunal Federal foi justamente a necessidade de respeito à dignidade da pessoa humana, que está presente nos direitos de personalidade e no que se inclui o nome da pessoa. Trata-se do direito de autodeterminar a sua própria forma de reconhecer-se e ser reconhecido em sociedade.
Embora, o posicionamento da Organização Mundial da Saúde represente um avanço significativo a população mundial é levada, desde cedo, a acreditar em uma concepção normal de casal como sendo o binômio homem-mulher. Isso por conta de todos os aspectos naturais, biológicos, religiosos e morais que cerceiam esse binômio. Para a docente é necessário mudarmos essa percepção. “Juridicamente é possível perceber alguns avanços, até mesmo porque os fundamentos para um tratamento igualitário do ponto de vista jurídico já estão postos, considerando os preceitos de dignidade, liberdade e igualdade que permeiam não só a Constituição Brasileira como tantas outras Cartas Políticas. A questão é que as mudanças necessárias para uma efetiva igualdade dependem não apenas de documentos legais, mas de uma profunda ruptura do ponto de vista cultural. O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais e transgêneros no mundo. Pessoas ainda são assassinadas simplesmente por serem quem são e, por isso, as medidas legais precisam vir acompanhadas de ações preventivas, educativas e de conscientização para o respeito e pela não discriminação”, enfatiza a professora.
Tássia Gervasoni frisa que esse tipo de assunto deve ser tema nas escolas, pois é uma das ações com enorme potencial transformador. “Desde cedo as crianças poderão aprender sobre a diversidade e a igualdade que nos identificam enquanto seres humanos, fazendo com que independentemente de quaisquer características sejamos respeitados e saibamos respeitar”.