“É o momento de tensão geopolítica mais importante desde o final da 2ª Guerra Mundial”

Bombardeios na Ucrânia já causaram a morte de mais de 350 pessoas e forçam nova onda de refugiados

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Alexey Furman/Agência Brasil     Alexey Furman/Agência Brasil
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Desde que as tropas russas cruzaram diversos pontos da fronteira terrestre com a Ucrânia, detonando os primeiros arsenais na região de Donbass na quinta-feira (24), onde grupos separatistas foram reconhecidos pelo presidente Vladimir Putin em Donetsk e Luhansk, os conflitos militares no país já cobraram a vida de 352 pessoas, sendo 16 crianças, e feriram 2.040 civis.  

A ofensiva, que entrou no sétimo dia de bombardeios às sedes militares atingindo, também, zonas residenciais, forçaram o êxodo de 500 mil ucranianos que buscam proteção nos países limítrofes, como Polônia, Romênia, Hungria e Moldávia, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).  

Sem acordo na primeira reunião entre ambas nações, convocada na segunda-feira (28) para negociar um cessar-fogo, os comboios russos avançam, agora, para tentar ingressar na capital, Kiev, onde os moradores se dirigem a abrigos subterrâneos quando os alarmes de ataque aéreo soam pelos quadrantes da cidade. “É o momento de tensão geopolítica mais importante desde o final da 2ª Guerra Mundial. O que estamos observando é o bombardeamento de um Estado Independente, por mais que o Putin diga que não considere e diga que é um território seu. Qualquer tentativa de ataque a essa soberania é uma guerra declarada que pode ter desdobramentos ainda maiores”, considerou o mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e colunista do O Nacional, Cezar Roedel.  

Ao justificar os ataques, o presidente russo alegou uma necessidade de proteger a população, desmilitarizar e “desnazificar” a Ucrânia, cujo território era unificado com a Rússia até a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em novembro de 1991. Embora o conflito tenha se intensificado nos últimos dias, Roedel lembra que a tensão entre o governo ucraniano e o Kremlin começou desde a deposição do presidente Viktor Yanukovych, em 2014, e da anexação ilegal da Crimeia, no leste da Ucrânia, pela Rússia naquele mesmo ano.  

Cezar Roedel é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e colunista do O Nacional. Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação


Por que houve a invasão? 

Além do controle territorial, onde algumas regiões ainda mantêm laços culturais, de idioma e políticos com os russos mesmo após o fim do regime soviético, a potencial adesão da Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é criticada por Putin, que exige uma neutralidade do governo ucraniano. Por isso, observa Roedel, é improvável que os confrontos escalarem para uma guerra a nível global. "Há um avanço da OTAN, dentro do conceito da defesa coletiva, para o Leste Europeu. Grande parte dos países, que fazem fronteira, são membros. Putin, dentro da sua visão autocrata, adota esse discurso de querer respaldar os separatistas que vivem uma região de combate nas duas principais províncias autoproclamada independentes”, mencionou.  

Todos esses fatores, e o próprio desejo da população ucraniana em buscar aderir ao Estado Europeu e a OTAN, levaram ao tensionamento geopolítico, explicou Cezar. “O Putin acaba se aproveitando, também, de uma fraqueza Ocidental e de uma falta de resposta que surgiu, justamente, com o reconhecimento das repúblicas separatistas”, considerou o mestre em Relações Internacionais ao dizer que “muita coisa precisaria acontecer” para presumir os conflitos como um estopim para uma potencial Guerra Mundial. “A Ucrânia não faz parte da OTAN. Então, ela não pode fazer a consulta pela possibilidade daquele artigo específico do Tratado Constitutivo que garante a defesa coletiva. O ataque contra um membro da OTAN é um ataque contra todos membros da OTAN e isso demanda uma resposta”, esclareceu Roedel.  

Sanções 

Buscando golpear a economia russa e punir o governo Putin pela violação dos tratados internacionais, a União Europeia, Estados Unidos e Canadá se comprometeram a remover a Rússia do sistema de transferências internacionais que conectam os bancos ao redor do mundo, conhecido como Swift. “Isso garantirá que esses bancos sejam desconectados do sistema financeiro internacional e prejudiquem sua capacidade de operar globalmente”, destacou o comunicado emitido na terça-feira (1º).  

As sanções, estima Roedel, afetariam 80% dos ativos comerciais russos e bloqueios aos ativos no exterior. Ainda assim, o especialista pondera ser “muito difícil” que as penalidades sejam aplicadas ao petróleo ou ao gás russo por reverter em uma problemática para as próprias potências ocidentais. “Desde a anexação ilegal da Crimeia, sanções econômicas já são aplicadas à Rússia. O que precisamos observar é o quão efetivas elas serão para isolar o Putin porque tudo indica que essa ofensiva militar já havia sido programada há bastante tempo o que possibilitou, inclusive, a reserva de dinheiro para eventuais dificuldades futuras”, ressaltou Cezar. 

Ao tentar reverter as possíveis sanções antes mesmo do início dos bombardeios com mísseis, o presidente russo “buscou uma parceria com a China, que tomou início em 4 de fevereiro quando ele deslocou para a abertura dos Jogos de Inverno e esperou o final do evento esportivo para iniciar as operações militares na Ucrânia”, diz Roedel.  

Como isso afeta o Brasil? 

Ao manter a tradição diplomática brasileira de não ingerência nos conflitos internacionais, o Palácio do Planalto deverá editar uma portaria para garantir o acesso de ucranianos ao passaporte humanitário brasileiro a ser publicada “nos próximos dias”, de acordo com o presidente Jair Bolsonaro, e continuar com a postura neutra em relação à guerra no Leste Europeu, onde os cidadãos da Ucrânia foram autorizados pelo presidente Volodymyr Zelensky a pegar em armas e a fabricar coquetel molotov para responder os ataques ao território.  

Ainda assim, destaca Roedel, o que sucede na entre russos e ucranianos tem potencial para provocar alguns problemas econômicos ao Brasil. “A Rússia tem um fornecimento muito importante de fertilizantes para o agronegócio brasileiro. Então, poderia haver alguma deficiência a medida em que as sanções econômicas vão sendo aplicadas”, exemplificou agregando reflexos, também, ao cenário energético com aumento no valor dos combustíveis com a alta do petróleo. “Isso irá encarecer o custo de uma forma muito significativa. Um eventual tensionamento na região do Mar Negro poderia gerar dificuldade para cadeias globais de fornecimento, mas isso seria um impacto de meio a longo prazo”, prosseguiu o especialista.  

Na terça-feira, oito servidores do Itamaraty desembarcaram na capital da Polônia, Varsóvia, para auxiliar no processo de resgate dos brasileiros impedidos de retornar ao país por causa do conflito. “A gente passa por um momento sensível nas relações internacionais e se verifica que, no plano Ocidental, não há nenhum país que tenha um papel de proeminência ou de liderança. Observamos, nos últimos dias, uma falta de unidade no discurso dos líderes da Europa e isso é justamente a janela que o Putin aproveita quase provocando um revide por parte da OTAN, frisou Cezar.  

Ao ressaltar o que considera “jogada arriscada” por parte de Putin, o especialista em Relações Internacionais salientou que “todo o aspecto diplomático tentado até agora foi jogado no lixo”. “Ele [Putin] tenta inverter a narrativa e colocar a Ucrânia como agressora enviando, até de forma debochada, “tropas de paz”. Vínhamos em um processo de paz relativo desde o fim da Guerra Fria. Muito provavelmente poderemos ter uma reconfiguração do poder político da Ordem Mundial, principalmente se essa parceria entre Rússia e China avançar em aspectos econômicos e militares”, projetou.  


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