Qualidade dentro da xícara

Mais exigentes e informados sobre os produtos que consomem, brasileiros têm buscado cada vez mais os cafés de qualidade elevada

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Em workshop recentemente ministrado por Gustavo Benvegnú, em Passo Fundo, o número de interessados superou o número de vagasEm workshop recentemente ministrado por Gustavo Benvegnú, em Passo Fundo, o número de interessados superou o número de vagas
Em workshop recentemente ministrado por Gustavo Benvegnú, em Passo Fundo, o número de interessados superou o número de vagas
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O cheirinho de café em pó passado no coador manual, com filtro de papel e generosas colheres de açúcar, é uma gostosa lembrança de infância para a maioria dos brasileiros, mas que tem dado lugar a novas memórias quando o assunto é a segunda bebida mais consumida do mundo. Agora, seja em pó, grão torrado ou cápsulas, os brasileiros estão mais criteriosos na hora de escolher como preparar o bom e velho cafézinho. A tendência de sofisticação deste hábito abriu espaço para novas opções no mercado: os chamados cafés especiais, com qualidade muito superior aos tradicionais. As diferenças entre as duas classificações vão desde o plantio até o jeito de preparar e servir o líquido.

Embora mais de 90% do consumo doméstico ainda seja de café tradicional, segundo pesquisa encomendada pela Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), já é expressivo o interesse e a preocupação crescente dos consumidores pela qualidade do produto presente nas versões especiais - tendência muito estimulada a partir do surgimento dos cafés em cápsulas. A pesquisa indica ainda que mesmo a crise econômica que afeta o Brasil não foi capaz de reduzir o consumo de cafés em geral no país. Pelo contrário, de 2016 para 2017 o crescimento de vendas na indústria brasileira do grão (contabilizando todos os tipos e qualidades) foi de 3,6% - o dobro do crescimento médio mundial. O aumento valeu também para o consumo per capita, que em 2017 foi de 5,1kg de café torrado e moído por habitante ao ano, o equivalente a 83 litros por habitante.

Falando de maneira mais segmentada, o corte de gastos por parte dos consumidores brasileiros também não atingiu o mercado de cafés especiais, que cresceu cerca de 15% no ano passado, evidenciando a tendência da população em preferir cortar a variedade de seus gastos mas sem se abster de, vez ou outra, se presentear com produtos de melhor qualidade. O barista Gustavo Benvegnú, passo-fundense que buscou especialização como barista júnior em Florianópolis, acredita que o que tem motivado a busca pelos grãos especiais é justamente o fato de eles serem mais saudáveis e mais saborosos. “São cafés mais interessantes para o paladar, podendo uma bebida especial apresentar várias nuances diferentes, desde quando a bebida está quente até o momento em que ela esfria. Outro fator é que, desde pequeno, nunca me lembro de um tempo onde o país não esteve em crise, ou seja, com crise ou sem crise, vale a pena criar boas memórias. Tomar um bom café é uma dessas opções para criá-las”.

Seguindo o mesmo raciocínio do colega de profissão, mas analisando a questão um pouco mais a fundo, Victório Borges pondera que a ascensão dos grãos especiais tem grande influência do intuito de ‘voltar às raízes’ e de uma maior consciência sobre sustentabilidade. “Nossa cultura de produtividade extrema e essa mania de sempre fazer as coisas com o menor custo e da maneira mais rápida possível está perdendo um pouco a força em alguns lugares e a preferência por coisas caseiras, orgânicas e de procedência conhecida está crescendo. Esse interesse está possibilitando o acesso e a produção de grãos de qualidade e estimulando uma nova cultura que busca não só um café de qualidade, mas que suporta o produtor local. Uma coisa leva a outra, pois ao mesmo tempo em que o consumidor está disposto a investir em um produto de qualidade, mais pesquisas podem ser feitas e o café de qualidade pode chegar mais facilmente ao mercado”, defende ele, que há um ano e meio deixou Passo Fundo para atuar como barista em Melbourne, na Austrália.

Tendência estampada nas ruas e nas prateleiras

A maturidade do mercado brasileiro tem permitido o surgimento de novas formas de negócios relacionadas ao café. Em Passo Fundo, não é preciso andar muito para notar: as prateleiras de supermercados, que antes exibiam somente os cafés tradicionais, agora dividem espaço com  cápsulas e pacotes a vácuo de pó e grãos de linha premium. É que, além de frequentar cafeterias, muitos amantes da bebida gostam de adquirir os grãos e preparar o líquido no conforto de casa, a fim de apreciar todas as etapas de preparação, mesmo que isso exija a moagem dos grãos. O importante, neste caso, não é o preço ou a pressa, mas sim preservar a qualidade superior. Recentemente, Gustavo Benvegnú trouxe de volta à terra gaúcha um pouquinho do conhecimento que adquiriu sobre cafés em terras catarinenses, por meio de um workshop de Iniciação ao Barismo, ministrado na Casa de Cultura Vaca Profana para o público em geral. O interesse dos habitantes pelo assunto, mesmo numa cidade interioriana, ficou evidente no número de inscritos: uma segunda turma do curso precisou ser aberta para conseguir absorver tantos interessados.

Mesmo para quem prefere consumir a bebida fora de casa, as opções de espaços também têm crescido: as novas cafeterias estão alinhadas às tendências de consumidores mais exigentes e informados e, por isso, incluem no quadro de funcionários pelo menos um profissional com formação adequada, como é o caso dos baristas. “O barista é o profissional responsável pela extração adequada da bebida. Isso inclui conhecimentos a respeito do grão, ou blend, e a higiene dos materiais usados para preparar a bebida. O termo barista tem origem italiana e é equivalente ao atendente da barra, a pessoa que prepara bebidas. Com o passar do tempo, restringiu-se o termo para os profissionais especializados em preparar café”, esclarece Gustavo. “Hoje consigo entender melhor qual a importância dessa profissão, porque você está literalmente ajudando as pessoas a acordarem e a terem um dia mais produtivo. Quando comecei a trabalhar nessa área me surpreendi bastante ao ver como é uma profissão que exige raciocínio rápido e condicionamento físico. Fazer café em alta escala é algo que precisa de muita atenção, velocidade e precisão. É parecido com cozinhar, pois você precisa manter o padrão do sabor e também da espera. Ninguém quer esperar mais de cinco minutos em um café”, complementa Victório.

Principais diferenciais

O sabor, a espessura, o aroma, a temperatura. Muitas são as diferenças de um café especial para um café comum de padaria. Segundo Gustavo, isto se dá desde a origem do grão. O café especial, geralmente, é colhido manualmente, por profissionais capacitados para reconhecer o grão maduro, e secado de forma natural. Ainda de acordo com ele, as diferenças no processo de produção do grão especial em comparação com o tradicional são praticamente todas: o tipo de grão, o cuidado com o terroir (qualidades do solo), o tipo de colheita e a seleção dos grãos. A classificação que garante ao café especial tal título é feita através do processo de cupping (uma espécie de degustação feita por especialistas). “O café especial se difere do tradicional por ter mais sabor, mais notas sensoriais, e é também uma bebida mais saudável. Outra diferença comum é que o café especial, geralmente, é da variedade arábica e o tradicional é da variedade canephora. O arábica é um café com menos cafeína do que o canephora. E, na maioria dos casos, o café tradicional, empacotado a vácuo, moído e torrado tem alguma fraude inclusa, já que não são perceptíveis a olho nu”, explica.

Conforme mostra o Atlas de Microscopia do Café Torrado e Moído, da Fundação Ezequiel Dias, as fraudes às quais o barista se refere vão além das impurezas oriundas da própria colheita e do beneficiamento não apropriado do fruto, como as cascas e os paus. Cada vez mais, outras espécies vegetais de custo inferior têm sido utilizadas de maneira intencional para fraudar o café tradicional. No Brasil, as adulterações mais frequentes incluem a presença de milho, soja, cevada, arroz e até açaí e triguilho; materiais que, além de alterarem a qualidade do café, podem acarretar danos em diferentes âmbitos ao consumidor. E, se levarmos em consideração que o Brasil é o maior produtor mundial de café e o segundo maior consumidor deste produto em todo o mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, podemos dizer que já era hora de o país passar a se preocupar com a qualidade do produto que produz, para além da quantidade.

Em Melbourne, conhecida como a cidade australiana do café, Victório conta que nota algumas diferenças na forma de consumir a bebida quando comparado àquilo que observava quando morava em Passo Fundo. “No Brasil temos muito o costume de passar o café e tomar ele preto ou com leite, já na Austrália o café espresso é o rei. Aqui a cultura é tão forte que até o mais pequeno café da esquina precisa dispor de diferentes tipos de leite (soja, amêndoa, côco), pois a concorrência é muito grande. Apenas na quadra onde eu trabalho encontram-se mais de cinco coffee shops. Hoje tudo isso já faz parte da minha rotina e quem mora na cidade já está acostumado com os diferentes tipos de café, mas para alguém que está visitando ou não conhece a cultura, encarar um menu com 10 tipos de café chega a ser engraçado”. Somente no café onde ele trabalha (um café brasileiro no sul da cidade, lugar pequeno mas sempre bem movimentado, nas palavras do próprio), Victório conta que diariamente são preparados cerca de 500 cafés, a maioria deles como “take away”, ou seja, para levar. “Recentemente tenho visto aumentar e muito a procura por café com leite de amêndoa, já que o leite de vaca está sendo utilizado cada vez menos por aqui. Grãos da América do Sul e da África são muito populares e o Brasil, Colômbia, Etiópia são países que estão no topo da lista de interesse. Algo curioso é que o costume de fazer ‘café’ com diferentes produtos está se tornando muito comum por aqui também. Basicamente, eles estão pegando alimentos e transformando em pó, diluindo com o leite e fazendo ‘cafés’ com açafrão, brócolis, beterraba ou cogumelos”, expõe.

Apesar do progresso observado quando o assunto é a procura dos brasileiros por café de qualidade, podemos dizer que a realidade observada por Victório em terras australianas ainda é um tanto distante da encarada aqui, quase tanto quanto a distância entre os dois países. Na região Sul do Brasil, o barista Gustavo constata que os hábitos de consumo ainda são bastante conservadores - além de a maioria da população preferir preparar o próprio café. “Os cafés que mais vejo serem vendidos são os empacotados a vácuo, moído e torrados. Cada um com seu gosto, mas aconselho as pessoas a conhecerem um café especial. O mercado da segunda bebida mais consumida do mundo é nacional e merecemos bons cafés”.

Dicas de degustação

Para quem está começando a conhecer a variedade de cafés, Gustavo aconselha a estudar os tipos de grãos, buscar os grãos especiais (que possuem dados de rastreabilidade, o que permite saber onde foi cultivado e de qual variedade se trata), conhecer os métodos de extração existentes e, depois disso, se aventurar. “Não é todo mundo que gosta de café, principalmente do café espresso. Eu mesmo demorei para pegar o gosto e fiz muita cara feia tomando café até me acostumar. É uma questão de treinar o paladar e explorar os sabores que à primeira vista parecem ruins. O primeiro passo é encontrar um grão de qualidade e não utilizar açúcar. É comum no Brasil a gente botar açúcar em quase tudo, então tomando o seu café puro já é um grande passo. Outra dica seria procurar lugares que realizam ‘cupping’. São sessões de degustação de café, explorando desde o aroma, o sabor, as notas e a textura. Não é uma prática muito popular no Brasil mas está ficando cada vez mais comum em São Paulo”, Victório adiciona.

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