Viajar para o futuro, mesmo que em tese e figuradamente seja viável, pois o amanhã é construído hoje; ainda, na prática, nos é vedado. Mas, voltar ao passado, não! E não há necessidade de você ser um adolescente que sonha virar um astro do rock e nem ter como amigo um professor aloprado. Tampouco repetir o roteiro do filme “De Volta Para o Futuro”, de 1985, protagonizado por Michael J. Fox, como Marty McFly, e Christopher Lloyd, como o Dr.Emmett Brown, e, na madrugada do próximo domingo (24), embarcar, no lugar de um DeLorean DMC-12, em um Opala velho e adaptado com "Capacitor de Fluxo" movido a plutônio e se lançar numa tresloucada corrida na descida da Rua Uruguai, rumo ao bairro Boqueirão, até atingir a velocidade de 88 milhas por hora e chegar em Passo Fundo, no ano de 1918. Uma olhada nos livros de história local e nos jornais da época é mais do que suficiente para essa volta ao passado e ter uma ideia de como os nossos conterrâneos lidaram com a pandemia da gripe espanhola que assolou o mundo entre 1918 e 1920, deixando um rastro de 50 milhões de mortos.
Fernando Mirada, historiador e presidente do Instituto Histórico de Passo Fundo, no ensaio “Apontamentos sobre a Gripe Espanhola em Passo Fundo – 1918”, conseguiu levantar, com base no que havia sido publicado no jornal A Voz da Serra, que o vírus da influenza espanhola chegou “pela via férrea” e começou a se espalhar pela cidade, pondo em alerta os órgãos públicos. E a Covid-19? Como chegou e se alastrou em focos pela cidade? Eis uma narrativa, com algumas evidências, ainda em construção.
A década de 1910, que, segundo Fernando Miranda, marcou o começo da nossa Belle Époque tardia, quando, efetivamente, a cidade iniciou a sua modernização (iluminação pública a base de lâmpadas elétricas, rede telefônica, instalação do primeiro banco e do primeiro cinema, construção de hotéis e a nova intendência, etc.), não estava terminando bem com a chegada da pandemia da gripe espanhola. Algo parecido sucederia 100 anos depois, com a Covid-19, e nos aflige nesse momento.
Que fizeram os passo-fundenses em 1918? Antecipo: nada muito diferente do que estamos fazendo hoje. O intendente (cargo equivalente a prefeito), Pedro Lopes de Oliveira, encaminhou relatório, ao Conselho Municipal, alertando sobre a gravidade da situação, e, embasado nas orientações do corpo médico, emitiu uma série de deliberações que, de forma livre, a partir da compilação do historiador Fernando Miranda, seria passível de resumo no exame e desinfeção dos trens e prédios, na identificação de passageiros infectados e “convite” para não desembarcarem; em evitar aglomeração de pessoas (proibição de acesso à estação de trens, fechamento de escolas, cafés, cinemas, etc.), na declaração de casos suspeito e confirmados ao corpo sanitário, em vedar o acesso a casas onde exista o mal (espécie de quarentena com placa de alerta), além de pedido de apoio à população às medidas tomadas, e, pasmem, proibir a venda de sais de quinino sem receita médica (para evita o esgotamento dos estoques). Essa história de cloroquina vem de longa data!
Mas como tudo na vida passa. A gripe espanhola, após se alastrar pela cidade, também passou. Fernando Miranda contabilizou 105 mortos, entre cidadãos anônimos e notáveis (caso do Capitão Jovino da Silva Freitas, um dos próceres do Partido Republicano). E, entre o seu legado “positivo”, nos deixou o hospital São Vicente de Paulo, que nasceria como uma enfermaria montada pelos Vicentinos, sob a liderança do Padre Rafael Iop, para se somar ao Hospital da Caridade (atual Hospital de Clinicas), fundado em 1914, no atendimento dos doentes.
Fernando Miranda relativizou os cálculos de Passo Fundo, em 1918, com 7500 moradores, para a cidade atual, com cerca de 200 mil habitantes. Na proporção histórica, com a mortalidade de 1,4% (em 1918), poderíamos ter 2800 mortos pela Covid-19. Não creio que isso vá acontecer. São outros tempos e outra Medicina. Ontem (21/05/2020), contabilizávamos 25 óbitos na cidade. Ainda falta muito para os 2800. Mas, precisamos nos insurgir, sim, contra essa aparente aquiescência servil diante da inevitabilidade da morte pela Covid-19.