De uma prática baseada em palpites, sabedoria popular e tratamentos forjados por tentativas e erros; para uns, em menos, dependendo o marco de referência que se adote, e, para outros, em pouco mais de 100 anos, damos um salto para uma das mais bem estruturadas áreas da ciência moderna: a Medicina. Então, fica difícil o entendimento da razão de tantos leigos e mesmo alguns profissionais da área médica, quase sempre de especialidades alheias à área da infectopatologia, emitirem tantas opiniões que não soam minimamente razoáveis diante da pandemia da Covid-19 que ora assola o mundo. Uma retrospectiva histórica da ciência, talvez, possa ajudar a perceber que muitas dessas opiniões, principalmente as leigas, remontam à antiguidade (Hipócrates e Galeno, século V a.C. e século II d.C.), ao século XIX e, com muita boa vontade, ao começo do século XX.
Nas ditas ciências médicas do passado, a percepção da importância de teste de hipóteses contra evidências empíricas era coisa rara. As mudanças, efetivamente, começaram com a teoria do germe da doença, a partir da descoberta de Pasteur, nos anos 1860. E seguiram com os avanços da bacteriologia, protagonizados pro Robert Koch na Alemanha, no final do século XIX, dando-se a aceitação e transposição da teoria do germe para a prática clinica no começo do século XX. Nessa mesma onda, Lister (o nome deve soar familiar como marca de antisséptico bucal), que introduziu o uso dos antissépticos (que matam germes), em1867, nas ditas cirurgias assépticas, ajudou a consolidar a percepção que a tentativa de cura não matava mais do que a doença. E assim, lentamente, foi ganhando impulso a ideia que diagnose e tratamento médicos deveriam ser baseados em evidências mais do que em intuição. E, claro, chegamos aos nossos dias da medicina de excelência que desfrutamos em Passo Fundo, após alguns saltos (datas aproximadas), que, apenas como exemplos, passaram pelo uso de antibióticos nos tratamentos clínicos (anos 1940), cirurgia cardíaca (1955), vacina conta a poliomielite (1955), transplante de rins (1963), quimioterapia (1971), fertilização in vitro (1978), angioplastia (1979); e muitas outras inovações médicas (atente que paramos nos anos 1970) que ocupariam essa edição inteira de O NACIONAL.
Justiça seja feita à maioria dos profissionais da área médica, pois são os leigos, principalmente, que fazem circular besteiras sobre tratamentos para Covid-19 pelas redes sociais. São soluções miraculosas que podem passar por ingestão de poções de veneno ou de substancias inócuas, bebidas quentes, usos de alimentos alcalinos, vômitos, suadouros e outros disparates em que apenas faltaram (ou eu que não vi ainda), para uma perfeita sintonia com o passado, recomendações de sangrias, aplicação de sanguessugas e perfuração cranial. Coisas que remontam uma época em não se sabia o que fazer com uma medição de pressão arterial ou de temperatura do corpo.
A medicina se transformou em Medicina quando seguiu o caminho da ciência. Quando o regramento legal deixou charlatães e práticos positivistas alijados do exercício da medicina. E não pensem que faz tanto tempo assim. Há quem compare, em conhecimento, a Medicina do começo do século XX com a Física do século XVII. Hoje ambas transitam nas fronteiras do conhecimento. A revolução a medicina, que teve inicio na Europa, nos anos 1890, chegou aos EUA depois do relatório Flexner de 1910, que influenciaria todas as Américas. Foi esse relatório que criou a obrigatoriedade de escolas de medicina ligadas a universidades e que os estudantes deveriam ter cursado dois anos de faculdade antes de iniciarem estudos na área médica propriamente, nos EUA.
Mas, foi a atitude cientifica (uso de padrões duplo-cegos, testes aleatorizados e primazia de evidências, por exemplo) que, efetivamente, revolucionou a medicina moderna. Quanto à solução para a Covid-19, nós, os leigos, e os políticos, das mais variadas matizes ideológicas, podemos relaxar, pois os cientistas e os profissionais da área médica (os que abraçaram a atitude cientifica, evidentemente) saberão encontrar. Nossos palpites são dispensáveis.