Nem o conceito de Deus (ainda mais depois de Stephen Hawking ter decretado que Deus não é necessário para explicar a criação do universo) parece gozar de uma posição epistemológica tão privilegiada quanto a que reivindicam, consciente ou inconscientemente, alguns membros da comunidade científica moderna. Em todas as áreas do conhecimento, com relativa facilidade, podemos encontrar quem busque se apropriar dos êxitos tecnológicos e, ao mesmo tempo, quando é o caso, se isentar de responsabilidade por falhas e resultados não previstos.
Nada é mais falso do que a suposta neutralidade social e política de algumas práticas científicas. Somos, na verdadeira acepção da palavra, produtos de uma civilização forjada a partir da ciência e da tecnologia. Nosso domínio tecnológico nos alvoroça à pretensão de senhores do universo, em que a ciência, quando se coloca acima da sociedade, isenta-se de julgamento e, por consequência, de qualquer condenação. Uma ciência imune à avaliação social e sem assumir responsabilidades, como é imaginada e advogada por muitos, se presta mais para criar conflitos entre o mundo dos valores e o mundo dos fatos do que para qualquer outra coisa. É óbvio que a ciência é um produto de forças sociais e tem (ou deveria ter) uma agenda social, que, muitas vezes, sequer é percebida pela maioria das pessoas.
Não existe a prática científica descontextualizada do social e do político. Tome-se como exemplo a nova relação que surgiu, a partir dos anos 1960, entre ciência e agricultura, em um movimento histórico que se convencionou chamar de Revolução Verde. Defensores ardorosos de um lado e detratores ferrenhos de outro, especialmente no campo ambientalista, protagonizaram debates que se estenderam ao longo dos últimos 50 anos, sem que, confrontados os argumentos, seja possível definir claramente quem está com a razão, apesar da inequívoca abundância na oferta de alimentos que a intensificação da agricultura, diga-se não sem custos ambientais e sociais, proporcionou desde então.
A Revolução Verde foi uma estratégia técnica-política de desenvolvimento orientada para a criação de abundância na oferta de alimentos no mundo, em sociedades nitidamente agrárias e com problemas de segurança alimentar, na Ásia e na América Latina; em tempos de Guerra Fria e sob ameaça de expansão do comunismo, embora muitos neguem, com veemência, essa última parte. Indiscutivelmente, foi uma estratégia bem-sucedida em termos de combate à escassez de alimentos e de domínio da natureza pela via tecnológica. No sentido estrito da palavra, foi uma revolução dirigida pela inovação cientifica e tecnológica, que, unindo ciência e política, buscou mudar as relações agrárias, com o intuito de criar a paz e a prosperidade. E conseguiu? Em parte sim e em parte não.
Há quem veja na Revolução Verde nada mais foi que um grande experimento global sobre desenvolvimento, política e economicamente centralizado, com o uso intensivo de recursos externos, criando dependência e oportunidades de negócios para as nações economicamente mais desenvolvidas, a par dos problemas ambientais e das novas crises sociais deixados como herança. Esse é o outro lado da Revolução Verde, com seus custos ecológicos e sociais não assumidos pela ciência. Os limites da natureza foram quebrados, muitas vezes pela destruição da diversidade natural e por meio da cultura da uniformidade. Em muitos aspectos desse processo histórico da agricultura mundial, a comunidade científica foi reconhecida como a responsável, reivindicando e recebendo os méritos pelo milagre da prosperidade na oferta de alimentos no mundo. No entanto, diante das novas crises que emergiram associadas ao uso intensivo de tecnologia em agricultura, a ciência, pelo discurso e ausência de senso de responsabilidade de muitos atores, parece que andou à margem desses problemas. O que nos redime nas ciências agrárias é que sem a intensificação tecnológica da agricultura, num mundo de quase oito bilhões de seres humanos, não se encontrou ainda a alternativa para a produção de alimentos na magnitude requerida.