Difícil imaginar (ou nem tanto, pois deixou discípulos aplicados) como alguém que foi agraciado com um Prêmio Nobel pode expressar ou defender ideias tão estapafúrdias ou indefensáveis, como as professadas por William Bradford Shockley (1910-1989). Pois esse renomado cientista e empreendedor, que recebeu o Nobel de Física em 1956, pela coinvenção do transistor, e cujas empresas que ajudou a fundar, para a exploração dos semicondutores, formaram o núcleo básico do que se tonou o Vale do Silício, também se prestou, nos anos 1960 e 1970, a liderar uma cruzada para prevenir a redução da inteligência nacional americana, que ele via como ameaça iminente pela miscigenação racial nos EUA.
Shockley defendia teses eugênicas por natureza. Naqueles tempos, a taxa de natalidade dos negros americanos era mais alta do que a dos brancos e, segundo ele, a persistência dessa tendência, levaria à diminuição do QI médio dos EUA. Então, acreditando piamente nisso, ele imaginou que a solução seria oferecer um prêmio de cinco mil dólares às mulheres negras que concordassem em ser esterilizadas.
E para ajudar nesse tipo de absurdo, essas ideias foram encontrar eco num artigo publicado em 1969, na prestigiada revista Harvard Educational Review, por Arthur Jensen, professor da área de Educação em Berkeley. O que Jensen afirmava era que a inteligência padrão dos negros nos EUA, pelo teste de QI, era muito menor do que a dos brancos. E completava, por ser a hereditariedade do QI muita alta, essa diferença entre brancos e negros seria genética. Acrescentando, absurdo dos absurdos, pelo pressuposto do comportamento genético não ser mudado pelo meio, que a esperança de alteração nessa lamentável diferença seria praticamente nula.
Desnecessário dizer que Arthur Jensen e William Shockley foram (e são) ouvidos por muita gente nos EUA e mundo afora. Mas, algumas vozes contrárias também se levantaram. Luigi Luca Cavalli-Sforza (1922-2018), especialista em genética de populações e vinculado ao Departamento de Genética da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, foi uma das mais destacadas.
Luca Cavalli-Sforza, sem muito esforço, mas com dificuldade para convencer os mais sectários, demonstrou que a falta de compreensão genética de Jansen e Shockley e seus asseclas era gritante. E que essa fragilidade seria a responsável pelos erros graves cometidos por eles. Além disso, no inicio dos anos 1970, Richard Herrnstein, professor de psicologia em Harvard, publicou um estudo demonstrando que as diferenças de QI entre classes sociais eram de duas a três vezes maiores do que entre brancos e negros.
A discussão, aparentemente, amainou nos meios acadêmicos, até retornar, em 1994, com a publicação do livro The Bell Curve (A curva normal), da lavra de Richard Herrnstein & Charles Murray, ressuscitando as velhas e surradas ideias racistas. Muitas das teses desse livro foram e ainda são adotadas e defendidas pelos conservadores extremistas nos EUA. O livro é bem escrito, busca a persuasão do leitor e exagera no uso de correlações (associações que não são relações de causa e efeito) para demonstrar que o QI dos pais importa mais do que a condição socioeconômica. Mas Herrnstein & Murray não insistiram que a diferença de QI entre brancos e negros seria genética. Ainda que, sutilmente, tenham defendido a mesma tese, ao alegarem que, pelo fato do QI ser tão hereditário, é “provável” que a diferença seja genética.
Luca Cavalli-Sforza defendia que a hereditariedade do QI estaria mais próxima dos 30% e não dos 60%, como referido por Herrnstein & Murray. Há que se considerar, segundo ele, no tocante à inteligência pessoal, que, além da hereditariedade genética, há uma parcela relacionada com a hereditariedade cultural (transmissão ao longo de gerações) e outra ligada a fatores individuais.
Os pais podem transmitir mais do que seus genes aos filhos. Incluam-se valores morais. Banir a ideia de que algumas raças são, definitivamente, melhores e mais inteligentes do que outras, seria um bom começo.