Se, nos anos 1970, Raul Seixas, para poder dormir “quase” em paz, depois de tomar um Dienpax, um Valium 10 e outras pílulas mais, ainda implorava, às duas hora da manhã, para receber nos peito um Tryptanol 25, a receita, hoje, seria outra: apenas um Ignorital.
O Ignorital, esse poderoso psicotrópico alienante, surgiria, por obra e graça dos roteiristas de Os Simpsons, no final da primeira década dos anos 2000. Virou cult o episódio no qual a genial Lisa faz uma apresentação na escola de como seria Springfield diante dos cenários de mudança do clima nos próximos 50 anos. Os professores, aterrorizados com o futuro apresentado por Lisa, sugerem aos pais (Homer e Marge) que ela precisa ser levada a um psiquiatra. Após examinar a garotinha, o médico a diagnostica com um distúrbio psicológico-ambiental e prescreve uma droga chamada Ignorital. O medicamento muda a percepção de Lisa sobre o mundo. Em vez de pessimismo, nela passar a grassar otimismo exacerbado. As nuvens viram ursinhos de pelúcia e na sua cabeça não para de ecoar a frase “que mundo maravilhoso!” Homer e Marge não conseguem lidar com essa nova Lisa e a decisão, mais sensata, foi parar com a medicação.
Quando a realidade nos confronta, com ou sem prescrição de Ignorital, há quem prefira fechar os olhos, tapar os ouvidos e emudecer diante dos cenários que se delineiam e podem afetar a nossa zona de conforto. Mais cômodo e mais fácil: se não tenho opinião, também não tenho responsabilidade. Se algo não existe, não preciso me preocupar com ele. Então, nego! E assim, frise-se, ignorância e negacionismo, que não são a mesma coisa, vicejam nos solos férteis das redes sociais, para os mais variados assuntos, fazendo as cabeças e mentes de muita gente.
Ignorância, no sentido inato de falta de conhecimento, não é um mal maior. Mas ignorar com a conotação de não reconhecer, de negar o que é conhecido (negacionismo) pode ser um desastre. As raízes dessa paixão humana pela ignorância, identificando coisas que, deliberadamente, optamos por não conhecer ou não reconhecer e as razões para isso, podem ser encontradas na psicanálise, como bem explorou Renata Salecl, socióloga e professora na Universidade de Londres, no livro A Passion for Ignorance, publicado, em 2020, pela editora da Universidade de Princeton.
Lacan e Freud podem ajudar nessa compreensão. Jacques Lacan popularizou o termo “paixão pela ignorância”, possivelmente tomado “emprestado” do budismo, que pode ser usado para explicar porque evitamos lidar com conhecimentos traumáticos. E Sigmund Freud alertou que quando alguém usar a forma negativa deve se prestar atenção no que vem depois, pois a negação pode ser uma afirmação de algo reprimido. Ele percebeu isso quando um paciente estava descrevendo um sonho e subitamente teria disso: “a mulher no meu sonho não é minha mãe”. Bingo! Acabava de revelar algo que o preocupava, negando. E assim, avolumam-se casos envolvendo homofobia, racismo, sexismo, xenofobismo etc.
A pandemia da Covid-19 é um bom exemplo para reflexão. Quando o vírus SARS-CoV-2 surgiu, em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China, as autoridades locais relutaram admitir a gravidade. Até a Organização Mundial da Saúde vacilou. Autoridades de vários países do mundo idem. Muitos de nós, por distante, não nos víamos sob esse risco (o colunista, inclusive). Havia, explicitamente, ignorância por falta de conhecimento para lidar e tratar com algo novo na área de saúde pública. Compreensível aquele comportamento global de primeira hora. Ainda que previsível (mas não esperável), em tempos de circulação mundial de pessoas e produtos, que um vírus tão agressivo pudesse se alastrar globalmente.
Mas, passado um ano, com tudo que a Medicina conseguiu avançar (diagnósticos, formas de controlar a transmissão, tratamentos precoces, vacinas, etc.) não se admite mais ignorância por falta de conhecimento. O resto é negacionismo. Meu Ignorital 50, pelo Amor de Deus! Enquanto releio Alice no País das Maravilhas e chupo a laranja mecânica. E a chuva promete não deixar vestígio...