Imagine-se vivendo no mundo criado pela ficção do escritor grego Nicos Panayotopoulos no livro “Le gène du doute” (O gene da dúvida). O enredo dessa história, assaz conhecido, mostra que, a partir de uma descoberta cientifica, o destino dos que ousam se aventurar no mundo da música, da pintura, da escultura e, especialmente, da literatura, seria, doravante, selado pela presença ou não do “gene do artista”, que era facilmente diagnosticado por um teste rápido e barato.
Que aconteceu naquela sociedade depois dessa descoberta revolucionária da ciência? Como essa informação passou a ser usada? Antecipo a resposta: da pior forma possível. O mundo das artes entrou em crise. Aos pretendentes a algum tipo de arte passou a ser exigida a credencial do famoso teste de Zimmermann. Os que não possuíam a marca do “gene do artista” não conseguiam organizar exposições das suas obras, as suas músicas não eram tocadas e nem gravadas, os seus livros não seriam mais publicados e, algo parecido com esses tempos de pandemia da Covid-19, o mercado de trabalho nas artes foi arrasado, eliminando gente talentosa e privilegiando uma casta de supostos predestinados, cuja qualidade artística do que produziam poderia ser posta em dúvida, apesar de “certificados pelo teste de Zimmermann”.
Mas, como para todo tipo de absurdo, quando em demasia, há uma reação, essa apareceu na atitude dos que se negaram a fazer o teste. Apoiados por James Wright, um escritor de relativo sucesso, eles criaram uma espécie de sociedade paralela de “artistas anônimos”. O roteiro da obra de Panayotopoulos é a confissão de James Wright, que ao se negar a fazer o teste, teria, ele próprio se condenado ao ostracismo e, no leito de morte, manifestaria dúvida sobre a escolha que fizera. Minutos antes de morrer ele decidiu fazer o teste. Recebeu o resultado e tomou a decisão de não olhar, optando por morrer com a sua dúvida intacta. Os leitores, no entanto, conseguem saber o desfecho: James Wright era portador do “gene do artista”. Mas a sua atitude não foi em vão. Ao optar por não fazer o teste de Zimmermann, apesar das consequências sofridas, ajudou para a reversão daquele tipo de atitude social, onde, sem a necessidade de qualquer comprovação, antecipavam-se credenciais de qualidade artística a partir de uma suposta marca genética. Aos poucos, pela atitude de James Wright, que optou por não saber, o teste do “gene do artista”, por não significar absolutamente nada, acabaria sendo abandonado.
A ficção de Nicos Panayotopoulos foi usada por Renata Saleccl (no capítulo 3 do livro “A Passion for Ignorance”, Princeton University Press, 2020) como preâmbulo para a discussão de algo muito sério: o papel da genética e sua parafernália de testes para uma possível antecipação de futuro na vida de um indivíduo.
Que você acha? Interessaria saber qual o destino que lhe reserva os seus genes sobre enfermidades graves quando em idade avançada? Alguma degeneração motora? Alterações psíquicas como a perda de memoria? Algum tipo de câncer? As coisas que você pede estar passando para a sua descendência sem saber, tipo a predisposição à criminalidade e ao alcoolismo? Você viveria melhor sabendo dessas coisas?
Difícil uma resposta assertiva para esse tipo de questionamento. Depende do uso que essa informação for se prestar. Há quem prefira saber e assim buscar possíveis tratamentos precoces (quando existem, evidentemente). E os que optam por ignorar (melhor não saber). As incertezas são muitas: e se as operadoras de planos de saúde começarem a exigir esse tipo de teste para os novos associados e para fixar os valores das mensalidades? Quem assegura que você vai viver até uma idade avançada para sofre alguma dessas potenciais doenças? Uma predisposição genética pode não significar nada sem os condicionantes do meio físico e social que, efetivamente, desencadeiem os processos. Que sentimento de culpa você estaria disposto a carregar ao saber que passou algo potencialmente danoso para os seus filhos?
Enfim, saber ou não saber, eis a questão.