Uma noite de verão. Passava um pouco de meia-noite. Um café noturno. Mesinhas e cadeiras. Nesse ambiente mal iluminado, dois homem. Um deles observa atentamente o outro. Na esquina, um vulto de mulher vestida de preto a espreitar. E, ao fundo, tilinta o som de um bandolim. Eis os elementos iniciais do conto O Homem da Flor na Boca (L´uomo del Fiori in Boca), do dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936).
A obra de Pirandello, escrita em 1923, ganhou visibilidade mundial pelas diversas encenações teatrais que recebeu. Os dois personagens da história são “O homem da flor na boca” e o “Pacífico freguês” que, ao perder, por detalhes, o último trem, enquanto esperava pelo primeiro da manhã, vivenciou uma inusitada experiência. Retrata a história de um homem que após receber o diagnóstico de uma doença fatal passa a prestar mais atenção nas pequenas coisas ao seu redor, falando tudo o que pensa e sente. Observa a vida com um olhar mais árido e crítico de si mesmo. A cena cume da história se passa quando o primeiro homem conduz o freguês do café para junto de um candeeiro aceso e diz: “Olhe aqui, debaixo do bigode...Aqui, está vendo? Não vê que linda tuberosidade violácea? Sabe como se chama? Tem um nome doce – Epitelioma!...A morte, percebe? Passou por mim. Pôs essa flor na boca e disse: Fica com ela, querido. Voltarei a passar por aqui dentro de oito ou dez meses! E agora, me diz se com essa flor na boca eu posso ficar em casa sossegado”.
A flor na boca, eis a metáfora de Pirandello para um diagnóstico de morte. Usou o câncer. Um epitelioma ou tumor maligno de pele que atinge as células epiteliais. Em 1923, soa razoável supor que fosse fatal. Hoje, talvez não. Mas, nessa época, poderia ter utilizado também a tuberculose. Ou, nos anos 1980/90, a AIDS. E hoje? A Covid-19 seria a “flor na boca da humanidade”? Prestar-se-ia para uma reflexão pirandelliana?
A tuberculose, antes dos antibióticos (anos 1940), foi a “For na Boca” de muita gente. Foi a “Flor na Boca” de Álvares de Azevedo, que escreveu “Se eu morresse amanhã, viria ao menos/ Fechar meus olhos minha triste irmã;/ Minha mãe de saudades morreria/ Se eu morresse amanhã!”. Na boca de Castro Alves, autor de “Oh! Bendito o que semeia/ Livros à mão cheia/ E manda o povo pensar!/ O livro, caindo n'alma/ É germe – que faz a palma,/ É chuva – que faz o mar!”. E também na de Noel Rosa, que produziu versos antológicos como “Quem é você que não sabe o que diz?/ Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!”.
Idem para o câncer, que atingiu Pablo Neruda, câncer de próstata na versão oficial da morte, que escreveu coisas como “Puedo escribir los versos más tristes esta noche./ Escribir, por ejemplo: “La noche está estrellada, y tiritan, azules, los astros, a lo lejo”. Ou o câncer de fígado que matou Jorge Luis Borges (...los años que he vivido en Europa son ilusorios,/ yo estaba siempre (y estaré) en Buenos Aires). E o câncer de pele que vitimou Bob Marley (I wanna love you and treat you right/ I wanna love you every day and every night ...).
E a “Flor na Boca” seguiu como a AIDS, nos anos 1980/90, que abateu Cazuza (Meus heróis/Morreram de overdose/Meus inimigos/Estão no poder/Ideologia!/Eu quero uma pra viver...), Renato Russo (Quem um dia irá dizer que existe razão/ Nas coisas feitas pelo coração?/ E quem irá dizer que não existe razão?...) e Freddie Mercury (Love of my life, you've hurt me/ You've broken my heart, and now you leave me...).
Afinal, a Covid-19 seria a “Flor na Boca” dos tempos atuais? Da humanidade, admitindo-se que essa pandemia tem paralisado o mundo e exigido novas posturas se quisermos sobreviver a ela (enquanto se aguarda a vacinação em massa), talvez SIM! Individualmente, considerando-se que o número dos recuperados supera muito os que morrem pela doença, NÃO! Mas, eu não ignoraria totalmente a metáfora de Pirandello, por supor que a Covid-19 pode passar por mim ou por você, colocar o vírus SARS-CoV-2 (a “Flor na Boca”) no meu ou no seu organismo, e dizer: “Fique com ela, querido. Se, nos próximos 14 dias, eu não der sinal de interesse por você, pode ficar sossegado!”.