Adiar a morte, mas não alcançar a imortalidade. Eis o que nos tem oferecido a medicina e seus avanços, salientou Edgar Morin no livro “O homem e a morte”, de 1951. Algo por demais relevante, frise-se. Afinal, como suportar as manifestações da decrepitude da velhice (ou chegar lá) sem o auxílio das ciências médicas?
A contrapartida de “esse viver mais”, sob os auspícios da medicina preventiva, detectando precocemente riscos de doenças, ou da regenerativa, pela reparação ou substituição de órgãos defeituosos, e tratamentos clínicos com drogas de última geração, é que, não necessariamente, tornamo-nos melhores seres humanos. Inclusive, o próprio Morin, ao retomar o tema em 2016, vislumbrou perda de “qualidades humanas” em um mundo habitado por Matusaléns (alusão ao patriarca bíblico, Matusalém, que, conforme Gênesis 5: 21 a 27, teria vivido 969 anos). O sentimento de “amortalidade” não nos livra da angústia da morte que, mais cedo ou mais tarde, vai nos alcançar, uma vez que não somos “imortais”. O ideal, em vez de um ser humano quantitativamente modificado (aumentado para viver mais), seria um ser humano qualitativamente melhorado.
O prolongamento da vida tende a provocar a diminuição de nascimentos. E, com isso, é possível vislumbrar redução de diversidade, que, discutível ou não, é sempre uma ameaça à criatividade e à inovação. Além de, acrescente-se, a possibilidade de intervenções genéticas em embriões, com a “concepção” de “filhos à la carte”, pela “eliminação” daqueles que se desviam de um “padrão” segundo a “vontade” dos pais ou do “modelo” preconizado como socialmente “ideal”. A ameaçadora padronização da humanidade.
Outra particularidade desse mundo de longevos é a automatização generalizada, em que, cada vez mais, atividades até então humanas, especialmente as ligadas ao trabalho, são e serão substituídas por máquinas inteligentes (essa destruição criativa poderá acabar com pelo menos dois terços dos empregos convencionais da atualidade, estima-se). Automóveis sem necessidade de condutor deixaram de ser peça do mundo da ficção científica, por exemplo, faz tempo. Robôs inteligentes para serviços domésticos têm demonstrado suas potencialidades. E quem já recorreu ao atendimento remoto de alguma prestadora de serviços de telefonia móvel, assinatura de canais de televisão, etc. deve ter percebido que não falou com gente e sim com uma “maquina inteligente”. Apesar do desconforto inicial, é melhor ir se acostumando, pois robôs para conversação (chatbots) poderão, no futuro, ser a sua melhor companhia, para atenuar os momentos de solidão, nesse seu desígnio de Matusalém. Substituirão os Pets com vantagens, há quem advogue.
Seremos cada vez mais inundados (já estamos, ainda que imperceptivelmente para a maioria) e, quem sabe, dominados pela tirania dos algoritmos de programação. É a inteligência artificial a serviço do homem (ou de alguns homens) dando as cartas. O poder de “máquinas pensantes” das quais dependeremos cada vez mais, embora, tenhamos consciência, que elas dependem de nós ou de alguns de nós. Mas, será que tudo é algoritmizável? Os algoritmos determinarão as nossas decisões e os nossos destinos doravante? Seremos reduzidos pela racionalidade dos algoritmos a máquinas triviais? Mais perguntas do que resposta. E as respostas, lamento pela desilusão, virão imperceptíveis para a maioria.
Evidentemente, o humano não é algoritmizável na sua plenitude, especialmente pelo lado da poesia da vida. Um exemplo clássico foi a discussão levantada pelos sommeliers que manifestaram “desagrado” pelo uso de computadores para provar vinhos. Há quem duvide que a inteligência artificial seja capaz de reproduzir o que aconteceu durante um painel de degustação na Embrapa Uva e Vinho, em Bento Gonçalves, testemunhado pelo enólogo Mauro Zanus, quando um participante, ao provar um vinho branco (possivelmente um Semillon), saiu com essa: “esse vinho me lembra ...me lembra feno, palha seca, e ...uma prima querida que nunca mais esqueci”. Mestre!