OPINIÃO

A última grande parada do Magro Ernani

Não atuava com autoritarismo. Agia diplomaticamente como um guardião da qualidade

Por
· 2 min de leitura
Doto - Daltro Mattos-ArquivoDoto - Daltro Mattos-Arquivo
Doto - Daltro Mattos-Arquivo
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

A última grande parada do Magro Ernani

 Nos anos 1970, as ondas da potente Rádio Planalto ecoavam na região. O diferencial estava na qualidade musical, atrativo que conquistou uma grande audiência. O responsável pela linha de programação era José Ernani. Sua voz metálica tinha o tom didático do professor para educar com informações sobre a arte, especialmente a música. Numa época sem FM e com poucas emissoras AM, a minha geração conheceu a música através dos seus programas. Quando cheguei à Planalto não integrei apenas uma equipe. Éramos a Grande Família Planalto. E foi nesse clima familiar que convivi com o Magro Ernani, como era chamado carinhosamente. Foi o nosso diretor artístico, exigente, inovador e com grande conhecimento musical. Na máquina de escrever, cercado pelas pilhas de discos, atuava como uma enciclopédia da música. Ou como pesquisador nas contracapas dos LPs.

Rádio e educação

O Magrão se desdobrava entre a rádio e o magistério. Na rádio era chefe de setor, programador, produtor e apresentava vários programas. O mais badalado era “A Grande Parada”, nas tardes de domingo. Dividia o tempo de rádio com o de professor estadual no CACT João De Cesaro e ainda das aulas de história no Gama, então o mais badalado cursinho pré-vestibular. O Ernani corria muito. Aliás, literalmente, estava sempre correndo entre a discoteca, o estúdio e a gravadora. Enquanto apresentava o Show da Manhã, produzia o Especial do final de semana. Mas ao mesmo tempo acompanhava a gravação da chamada para a Grande Parada. E, na passagem, ainda abria a porta da redação para uma breve corneta nos colorados. A música já estava acabando e o operador soava a estridente campainha. Então o Magrão patinava no parquê dos corredores para chegar ao microfone a tempo de dizer o nome da música e a hora certa. Sempre inquieto, aproveitava os 60 segundos de comerciais para levar um disco até a gravadora. Assim era a rotina do José Ernani. Todos os dias percorria muitos quilômetros naquele prédio da Coronel Chicuta.

Brincalhão e exigente

As correrias não afetavam duas características marcantes do Magrão: brincalhão e exigente. A molecagem recíproca logo nos aproximou, para o sofrimento de incautos colegas. Bem boladas, as brincadeiras eram do bem. E não escapava ninguém. O problema era a indisfarçável expressão de culpa do Ernani. Brincadeiras familiares que fortaleciam os laços de amizade de uma galera afinada. E o lado exigente? Ora, José Ernani seguia uma linha moldada com base em estágio na Rádio Universidade Católica de Pelotas, mais a sobriedade da Guaíba e a qualidade musical da Jornal do Brasil. O ouvido jovem ainda era influenciado pela vanguarda da Continental. E ponto final. Ele não permitia que rodássemos porcaria ou cometêssemos atropelos no português ou erros de pronúncia. Não erguia a voz com ninguém. Apenas apontava erros e explicava como deveria ser. Não atuava com autoritarismo. Agia diplomaticamente como um guardião da qualidade. E assim, o Ernani preservava o que considerava fundamental: o “padrão Planalto”.

De Roberto a McCartney

Vira e mexe, o Magrão chegava com um indisfarçável sorriso de novidade à vista. Sintoma de lançamento musical, nova edição da Billlboard ou mais uma entrevista exclusiva. Entrevistou os maiores nomes da MPB. Da fita cassete saíram programas especiais com Roberto Carlos, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Belchior, Simone, Toquinho e tantos mais. Além disso, o Ernani não perdia os grandes shows que passavam por Porto Alegre. Voltou fascinado com Paul McCartney, mas também aplaudiu orquestras das antigas e bandas jovens. A correria ainda permitia ser o centromédio no time da rádio ou brincar no futebol de mesa. Mas, nos últimos tempos, as correrias do nosso Magrão foram pelos corredores do hospital. Manteve o mesmo pique dos corredores da Planalto. E, aproveitado um intervalo entre tratamentos, pediu que a última camisa fosse a do Paul McCartney. Até porque a vida é uma grande parada. 

 

Gostou? Compartilhe