Assim que a doença causada pelo vírus SARS-CoV-2 ganhou ares de pandemia global, no começo de 2020, duas celebridades do universo acadêmico, o sociólogo francês Edgar Morin e o historiador israelense Yuval Noah Harari, trataram da temática que afligia e ainda aflige o mundo. Será que há comunhão entre esses intelectuais? Pensariam diferente um homem que completou 100 anos (Morin nasceu em 1921) e viveu as grandes crises do século XX (a crise de 1929, a ascensão de Hitler, a Segunda Guerra Mundial, as atrocidades da era Stalin, o Maio de 1968, etc.) e um jovem no auge dos seus 45 anos (Harari nasceu em 1976) e criado em tempos de maior liberdade?
Morin e Harari, por incrível que possa parecer, apresentam mais confluência do que divergência de pensamento sobre a atual pandemia da Covid-19. Especialmente, quando tratam das lições deixadas para a construção do mundo pós-coronavírus e suas ameaças. Sim, a pandemia, mais além de uma crise sanitária, deu origem a uma megacrise planetária, formada pela combinação, em maior ou menor grau, de crises políticas, econômicas e sociais. E trazendo à tona a revelação até então inédita, para muitos, de que tudo que parecia separado é inseparável. Afinal, quem vencerá a disputa ideológica entre o isolacionismo nacionalista e a cooperação global? Quais são os riscos reais da ascensão de estados totalitários no rastro das novas tecnologias de monitoramento digital da população? Eis os desafios e as difíceis escolhas que teremos de fazer em tempos difíceis.
O risco maior que a humanidade ora enfrenta não parece ser o vírus e sim seus próprio “demônios interiores”. Há uma luta a ser travada contra ódio, a ganância e a ignorância, que, sobejamente, vicejam onde menos se imaginaria que encontrariam terreno fértil para prosperarem. Quem não conhece alguém que nessa pandemia se revelou efetivamente quem era e como pensava pelas redes sociais? Dando-se ao luxo de propagar o ódio, ao insistir culpar estrangeiros e minorias ou quem pensa diferente, estimular a ganância e buscar lucrar mais a todo custo (negociatas com vacinas, por exemplo) e
disseminar a ignorância ao difundir e acreditar em ridículas teorias da conspiração (fake news).
Ignorar que pandemias, no passado, sempre deflagraram crises e que vírus, por piores que sejam nunca moldaram a história, e sim que os humanos possuem essa atribuição, parece ser um desafio a superar. Afinal, que buscamos? Terminar o isolamento e retomar a corrida infernal de antes? Dar azo às crises das democracias, ao flertar com autoritarismos, e intensificar o nacionalismo agressivo e xenófobo? São as escolhas que estamos fazendo e as nossas atitudes de enfretamento dessa crise que moldarão o mundo e não o vírus SARS-CoV-2.
Há riscos inerentes, e que preocupam no pós-pandemia, levantados tanto por Morin quanto por Harari: a ameaça às liberdades individuais, de ir e vir, desaparecerá junto com o vírus? Quem pode assegurar que os poderosos instrumentos de inteligência artificial criados para monitorar a pandemia não serão utilizados para criar sociedades de vigilâncias sem precedentes? Sim, muitas coisas dessa pandemia permanecerão no pós-pandemia. No mundo das corporações e da educação, acredito que não haverá volta: teletrabalho/home office e EAD são e serão partes desse novo mundo.
O que nos cabe, por ora, é não gastar mais tempo tentando dar sentido às mortes causadas pela Covid-19. Os nossos heróis não são padres, pastores e outras autoridades religiosas que enterram os mortos e justificam a calamidade como vontade Divina. Os nossos heróis são os médicos e profissionais de saúde que salvam vidas! E os nossos super-heróis são os cientistas que nos laboratórios buscam criar vacinas e novas drogas para tratar a doença. Depois da morte, pouco importa se alguém vai lembrar-se de você ou não, insiste Harari, ao replicar a resposta de Woody Allen ao ser questionado se ele desejava viver eternamente na memória dos cinéfilos. Allen respondeu: “Prefiro continuar vivendo no meu apartamento".