Foram 10 anos de busca por um livro. Desde a 14ª Jornada Nacional de Literatura, realizada em agosto de 2011, que, após conversa que tive com a escritora argentina Beatriz Sarlo, eu procurava por um pequeno livro que, na ocasião, ela indicou. O diálogo com Sarlo versou, incialmente, sobre o livro “Borges, un escritor en las orillas”, que reuniu as quatro conferências que ela deu na Universidade de Cambridge, em 1992.
Mas, o assunto principal foi, evidentemente, Jorge Luis Borges. Ela contou coisas que a maioria das biografias do escritor argentino ou tratou com superficialidade ou nem tocou. Por exemplo, como alguém que sequer concluíra o equivalente ao ensino médio poderia assumir uma cadeira de Literatura Inglesa e Norte-Americana na Universidade de Buenos Aires? Imagine sob o ponto de vista do Direito positivo que impera no Brasil: impossível! Mas, em regimes de exceção, no rastro da Revolução Libertadora, o golpe de Estado que havia derrubado Perón, nada é impossível. E assim, Borges, apoiador incondicional do governo Aramburu, foi alçado ao cargo de professor universitário sem maiores obstáculos. O inconveniente seria corrigido por um doutorado honorífico que recebeu da Universidade de Cuyo, em Mendonza, o primeiro de muitos. No seu “Ensaio autobiográfico”, Borges faz um relato algo benevolente e um pouco irônico dessa nomeação: “Outros candidatos tinham enviado minuciosos relatórios de suas traduções, artigos, conferências e demais realizações. Limitei-me à seguinte declaração: Sem me dar conta, venho me preparando para esse cargo durante toda a minha vida. Essa simples proposta surtiu efeito. Contrataram-me.” Ignorou a mão invisível de Aramburu travestida no “Decano Interventor” Alberto Salas.
O livro indicado por Sarlo, e que eu só consegui agora, foi “Un día de Jorge Luiz Borges”, escrito pelo sobrinho de Borges, Miguel de Torre y Borges. A obra, editada em 24 de agosto de 1989, cuja primeira edição foi de 200 exemplares numerados e teve diversas reproduções em suplementos culturais de jornais e revistas. A segunda edição, revista e ampliada, seria publicada em 1º de março de 1995, com tiragem de mil exemplares. E foi dessa segunda edição que eu consegui um exemplar, que sequer fora lido, pois as páginas ainda não haviam sido separadas. Nesse exemplar, há uma dedicatória do livreiro Alberto Casares: “Para Mariah con mucho cariño, recuerdo de su paso teatral por mi librería. B. Aires, 13-I-15”. Foi nessa livraria que Borges, em 27 de novembro de 1985, viveu seu ultimo compromisso público em Buenos Aires: uma exposição das primeiras edições das suas obras. No dia seguinte, acompanhado de Maria Kodama, partiria rumo à Europa para não mais voltar.
Miguel de Torre y Borges relata, ao acaso, uma quarta-feira qualquer da primavera de 1944. Descreveu os hábitos de Borges, desde a hora de acordar, o ambiente do apartamento, o café com leite no quarto, a dificuldade para vestir a roupa e acertar o nó da gravata, a saída para rua carregando um exemplar de La Nación embaixo do braço. A ida a uma barbearia, a passagem pela livraria inglesa Mitchell, onde compra um livro que julga com potencial de traduzir. O retorno para casa, onde lê, toma notas, consulta a Encyclopaedia Britannica, almoça e, no começo da tarde, toma um bonde, o numero 7, para mais uma jornada na Biblioteca Municipal Miguel Cané. São 50 empregados na minúscula biblioteca. Gente demais. Borges faz a sua tarefa e gasta o resto do tempo lendo e escrevendo. Os assuntos puxados pelos colegas não lhe atraem: futebol, turfe e mulheres. No final do expediente bebe uma ginebra num bar das redondezas. Recebe a visita de uma amiga e volta com ela. Vão ao cinema, conversam, jantam num restaurante da Estação Retiro e antes da meia-noite está em casa. Conversa com a mãe sobre o dia e literatura. Vai para o quarto, lê um pouco, apaga a luz e, apesar de agnóstico, murmura a oração que aprendeu com a avó inglesa: “Our Father, which art in heaven, Hollowed be the thy Name. Thy kingdom come. Thy will be done, in earth as it is in heave...”.