A arte da compreensão das possibilidades e das impossibilidades da tradução de uma obra literária, ainda que soe demasiadamente simples, pode ser, em última instância, uma boa síntese do que se entende por literatura comparada. É isso e também, evidentemente, um pouco mais. Mas, de fato, não é literatura comparada o entendimento, tão em voga em alguns cursos de Letras, que, na formação dos alunos, no máximo, reservam a essa disciplina o papel de assegurar a leitura das ditas obras fundamentais da literatura universal.
George Steiner (1929-2020), o intelectual de escol, que nasceu na França e foi educado nos EUA e na Inglaterra, é o grande mestre da literatura comparada. Quer seja nos seus livros de ensaios, nas suas críticas literárias e nos cursos que ministrou nas universidades de Cambridge, Oxford, Stanford, Princeton, Yale, Harvard, Genebra e outras mais, a temática da literatura comparada sempre se sobressaiu. Para Steiner, literatura comparada é, entre outras coisas, uma arte rigorosa e exigente de leitura. Um estilo de ouvir ou ler atos de linguagem que privilegia os componentes desses atos. E, mesmo que esses componentes não sejam negligenciados em qualquer outro modo de estudo literário, a grande diferença é que, na literatura comparada, eles são privilegiados.
Ler é comparar, resumiu George Steiner, no ensaio “O que é literatura comparada?”, que reúne o conteúdo da aula inaugural que proferiu na Universidade de Oxford, em 1994. Linguisticamente falando, argumenta Steiner, apossamo-nos das palavras e fazemos uso delas tomando por base o que diferencia aquelas palavras das demais que conhecemos. E, no caso da poesia, por exemplo, o choque sobrevém quando a linguagem do poeta nos faz reconhecer algo que não sabíamos que conhecíamos. Eu, nesse ponto, sugiro uma pausa para reflexão sobre o que foi posto, antes de continuarmos nessa leitura apressada, prezado leitor! Reitero: reflita sobre a importância de “reconhecer algo que não sabíamos que conhecíamos”.
A primazia da leitura é o que prega Steiner. Ler, em essência, a obra, e não, ainda que muito úteis, apenas os livros de comentadores dessa obra. Todavia, apesar do que foi posto, não se pode ignorar a importância das obras dos comentadores, pois, através delas, podemos, inclusive, ser influenciados por livros que nunca lemos (mas ouvimos falar à exaustão). Ler (ou reler) os clássicos, reitera Steiner, é imprescindível, uma vez que qualquer obra sempre nos precede. Os antigos ainda (e sempre) são novidades. É impossível, por exemplo, a prática da psicanálise sem Narciso, Electra, Édipo, etc.
A leitura de Shakespeare, o misterioso cânone da literatura ocidental, é considerada por George Steiner como primordial. O Bardo escrevia com tamanha espontaneidade que, incrivelmente, quase tudo que permeia o nosso dia a dia pode ser recolhido nas suas obras. Pense que Shakespeare, sem nunca ter estado naquelas cidades, criou Veneza (em O Mercador de Veneza) e Verona (em Romeu e Julieta) quando elas já existiam. Shakespeare, há quem admita, forjou a história inglesa. Os reis são de Shakespeare, as batalhas são Shakespeare, etc. O nossos ciúmes são de Otelo, as nossas senilidades são de Lear e as nossas ambições são as de Macbeth, destacou Steiner. Quer entender como é possível alguém criar aquilo que já existia? Leia Shakespeare. Eis porque Aristóteles, ao ter afirmado “a poesia é mais verídica do que a história”, soa atual.
Ler com o espírito da literatura comparada apregoado por Steiner pode possibilitar que se chegue, inclusive, ao milagre da tradução magistral, mesmo sem qualquer conhecimento da língua original da obra. Isso é muito comum no mundo acadêmico em que, não raro, alguém se vê diante da obrigação da leitura de artigos ou livros publicados em línguas diferentes da sua. Evidentemente que, em muitos casos, a leitura é feita, não importando o idioma do texto, na língua materna do leitor. Abra um bom dicionário e tente. É só começar, você verá que é fácil!
P.S.: coluna originalmente publicada em 11 de maio de 2018.