Na memorável conferência que proferiu, em 24 de abril de 1973, no simpósio The nature of scientific discovery, realizado pelo Smithsonian Institute, em Washington D.C., EUA, o Prof. Werner Heisenberg, laureado com o Nobel de Física em 1932, esmiuçou o papel que, para o bem e para o mal, a tradição desempenha no dia a dia da comunidade científica.
Começou pelo questionamento de quão livres efetivamente são os cientistas na escolha dos problemas aos quais se dedicarão ao longo da carreira. Ainda que não seja algo facilmente perceptível por todos, até mesmo pelos próprios interessados, os cientistas não precisam inventar os seus problemas de pesquisa, frisou Werner Heisenberg. Os problemas, os métodos, os conceitos científicos pertencem a uma tradição que vem de séculos. A liberdade na escolha dos problemas de pesquisa é pequena. Em geral, os problemas são dados, estão postos (pelos editais das agências de financiamento de CT&I, inclusive). E, sendo assim, então: como formular uma questão nova que exige ciência (de qualidade) para ser respondida? Quando a tradição influencia na seleção do problema, na escolha do método e no uso de conceitos como ferramenta de trabalho dos cientistas, se prestando mais para exaltar certezas que definir dúvidas, os prejulgamentos advindos dessa situação atrapalham em vez de ajudar.
Assim como na arte, também na ciência a tradição e o desenvolvimento histórico desempenham papéis cruciais. Heisenberg valeu-se, a título de exemplo apenas, de como a expressão de emoções, tão comum nas obras literárias do passado, mas ausentes do mundo musical, serviram de motivação e inspiração (o problema que clamava por solução) para compositores como Mozart, Beethoven e Schubert, que se debruçaram no trabalho e, com maestria e genialidade, transpuseram toda a emotividade, até então conhecida apenas nos textos literários, para a música. Mas, assim como na arte, também na ciência pode acontecer que a nova geração se canse do passado e da velha tradição, e busque o novo. Quando ocorre, têm-se as grandes rupturas e as verdadeiras revoluções do conhecimento. Mas, enquanto isso não acontece, vive-se, no mundo acadêmico, o comodismo da “ciência normal” e muitas carreiras profissionais, vistas externamente como bem sucedidas, são cumpridas apenas pela feitura de mais do mesmo.
Nesse paralelismo entre ciência e arte, levantado por Werner Heisenberg, o papel do relacionamento pessoal entre professores e alunos ou entre mestres e discípulos tem, historicamente, sido de alta relevância. Nos domínios da Física, Heisenberg citou Niels Bohr, cientista cuja influência sobre os físicos nucleares foi maior pela forma como discutia ciência do que propriamente pelos artigos que publicou. Niels Bohr sabia discutir com elegância as dificuldades e os paradoxos tão comuns na interpretação de resultados de experimentos. Tinha uma clareza ímpar sobre a relevância que há na troca de informação entre os resultados experimentais e as teorias que lhes dão sustentação.
A tradição formata o nosso jeito de pensar sobre os problemas. Por isso é tão difícil ir além do que já é conhecido no mundo científico ou em qualquer outra coisa do nosso dia a dia. Acreditamos, falsamente, que, nas ciências predominantemente experimentais, tiramos novos conceitos a partir de dados empíricos, criando novas teorias embasadas neles. Segundo Albert Einstein, é impossível introduzir algo observável numa teoria. Pois, e isso não se discute, é a teoria que decide o que é observável.
E sendo a história da ciência a própria história dos conceitos, faz-se necessário, para haver inovação científica, a mudança de conceitos. E é nesse particular que a tradição, ao refutar o novo, privilegiar o passado e o obsoleto e confundir aplicações práticas meramente com benefícios econômicos, em vez de promover, pode emperrar o desenvolvimento científico e tecnológico. Ao desencorajar novos esforços e facilitar a acomodação.
P.S.: coluna originalmente publicada em 28 de março de 2014.