No dia 22 de novembro de 2021, foi publicada a Lei 14.245, que visa coibir a prática de atos atentatórios contra a dignidade da vítima e das testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo.
Trata-se de uma Lei com nome e sobrenome: Lei Mariana Ferrer.
Ela propõe que as partes processuais, em especial nos processos que apurem crimes contra a dignidade sexual, no Júri e no Juizado Especial Criminal, deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa.
De acordo com a norma, é proibida a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos em apuração e a utilização de linguagem, informações ou material que ofendam a dignidade da vítima e das testemunhas.
O leitor e a leitora podem estar se perguntado o motivo para a Lei ser chamada de Mariana Ferrer. É que ela nasce com o Caso Mariana Ferrer. Trata-se de uma resposta legislativa ao trágico episódio ocorrido na audiência do referido caso, em que a Sra. Mariana, na condição de vítima de suposto crime sexual, foi exposta a um tratamento ultrajante, discriminatório e sexista.
É difícil que alguém não reprove o show de horrores ocorridos. Na condição de advogado, lamentei o ocorrido e propus a reflexão de que os processos sejam conduzidos com ética, respeito e lealdade a todos e todas.
Com a publicação da Lei, porém, as preocupações foram ampliadas. Ao analisá-la, a primeira inquietação foi a de se é realmente necessário editar uma lei que obrigue as partes de um processo a se tratarem com dignidade.
Entendo que a dignidade processual, por assim dizer, decorre do direito constitucional à dignidade humana, devendo ser aplicada sem qualquer distinção de gênero, raça ou credo. Se todos somos iguais perante a lei (art. 5º da CF/88), parece evidente que todas as pessoas tenham sua integridade física e psicológica preservadas em processos e fora dele.
Poder-se-ia dizer que, no Brasil, em razão do ranço patriarcal e do machismo enraizado na sociedade, o óbvio precisa ser dito. Apesar de entender que a Constituição e as Leis que regem a magistratura já oferecem uma proteção eficiente a esses direitos, concordo com a preocupação do legislador.
Contudo, a sua redação precisa ser melhor pensada, minimizando a criação de injustiças e desequilíbrios processuais. É que, da maneira como redigida, a lei mais contribui para um ambiente de insegurança jurídica do que à proteção de direitos.
Primeiro, porque não está claro se a lei quando fala vítima e testemunhas está se referindo a homens e mulheres, ou somente a mulheres. Se compararmos com a Lei Maria da Penha, seria possível pensar que ela se aplica apenas às mulheres, o que criaria uma situação inusitada, afinal todas as partes processuais, sejam homens ou mulheres, merecem ser tratadas com dignidade.
Segundo, porque a Lei acaba esquecendo de incluir uma figura importantíssima do processo penal: a do acusado e da acusada. Não seriam eles detentores da dita dignidade processual?
Tal omissão é prova da face punitivista e discriminatória a que está inserido o processo penal brasileiro. O tratamento humano e digno deve alcançar vítimas, testemunhas e acusados, independente do gênero.
Terceiro, porque, como advogado, poderei precisar falar sobre o perfil de uma vítima, um homem, por exemplo, para defender uma acusada que se excedeu em uma legítima defesa. E se eu disser, ao Júri, que o excesso está justificado pela postura controladora e agressiva da vítima? Estarei atentando contra a dignidade desta? E como fica a plena defesa e a dignidade da mulher a quem o companheiro nunca deu o mínimo respeito?
Por tudo isso, é que concluo estarmos diante de uma Lei que nasceu com ótimas intenções, mas pecou na execução, podendo gerar a um só tempo, avanços e retrocessos processuais. É preciso uma Lei que defenda o gênero feminino sem afrontar outros direitos fundamentais.