Não há nesse Rio Grande de São Pedro, quem não pense em São Miguel (o arcanjo que comandou os anjos bons na batalha triunfal contra Lúcifer, o mensageiro da luz, e os anjos maus) e logo não associe com enchentes. As referências, na cultura popular sul-rio-grandense, respeitosas frise-se, a São “Miguel Mijão” e enchentes são abundantes. Um apanhado delas pode ser encontrado no livro “Santa Bárbara, São Jerônimo! – Astro-Meteorologia Popular”, de Hélio Moro Mariante, publicado pela Martins Livreiro Editora, em 1984.
Há um nexo causal entre a crendice popular e os fenômenos meteorológicos associados (excessos de chuva) e São Miguel. Para tal, não se pode ignorar a época do ano que é comemorado o Dia de São Miguel: começo da primavera. O Dia de São Miguel é festejado em 29 de setembro, com procissões que se espalham por todo o território nacional. Em Passo Fundo, por exemplo, a tradição, que vem desde 1871, em 2022, completou a sua 151ª edição. E é nessa época do ano, em alguns mais cedo e em outros mais tarde, que passam a atuar, mais incisivamente, os chamados complexos convectivos de mesoescala (CCMs), que nada mais são que grandes aglomerados de nuvens que se formam sobre o Paraguai e se deslocam para o sul do Brasil, causando chuvas de grande intensidade, atingindo, principalmente, a metade norte do Estado. Essas ocorrências, em alguns anos, geraram enchentes de proporções catastróficas. Portanto, não é difícil entender, uma vez que não vem de hoje, que a população local tivesse associado essas cheias com o Dia de São Miguel.
E mais: as “enchentes de São Miguel”, climatologicamente, acentuam-se nos anos de El Niño (fase quente do fenômeno El Niño – Oscilação Sul), quando costuma chover acima dos padrões normais do clima no sul do Brasil. Vem daí que São Miguel, além de ter derrotado Lúcifer e sua tropa (o seu lado bom), levando-o, depois de três dias de batalhas, a descer para o Inferno e viver para sempre no reino das trevas, ainda levar a culpa (uma injustiça) pelas travessuras do Menino Jesus (El Niño, em espanhol) lá no Céu.
Enchentes no Rio Grande do Sul não são primazias de São Miguel, mas de El Niño (do Menino Jesus). A mais reverenciada é a de 1941. Foram 22 de chuva, durante os meses de abril e maio de 1941, que causaram aquela que é considerada a maior catástrofe climática vivida por Porto Alegre. O saldo foi 70 mil pessoas obrigadas a deixarem suas casas, prejuízos econômicos de toda ordem e mais de 600 empresas afetadas, levando meses paro o retorno à atividade ou até mesmo fechando as portas em definitivo. Na visão de muitos foi uma “revolta do Guaíba contra a cidade”.
Um relato indispensável do episódio da “Enchente de 41”, com texto primoroso e reprodução de farto acervo fotográfico daqueles memoráveis dias, pode ser encontrado no livro “A enchente de 41”, do jornalista Rafael Guimaraens, publicado pela Libretos, em 2009, com financiamento da Prefeitura de Porto Alegre. Segundo consta, o Minuano soprando sobre o leito da Laguna dos Patos represou o Guaíba, literalmente empilhando suas águas sobre a cidade. No dia 8 de maio, o Guaíba alcançou 4,76 metros acima do nível, configurando a maior enchente da história de Porto Alegre.
Não foi um fenômeno exclusivo de Porto Alegre, quando entre 10 de abril e 14 de maio de 1941, choveu, em 22 dias, 619,4 mm. Outros locais também enfrentaram problemas de chuvas abundantes. Em Santa Maria choveu 905,3 mm, em Soledade foram registrados 895,0 mm e em Passo Fundo 425,4 mm, nesse período. Desta vez, São Miguel, costumeiramente acusado pelas enchentes de primavera, era inocente. O culpado, se identificaria cerca de 40 anos depois, foi El Niño. Esse fenômeno é responsável por excessos de chuva, principalmente na primavera. Mas, a sua influência, em algumas ocasiões, também se dá no outono. Algo parecido viria se repetir no El Niño de 1982/83. No outono de 1983, choveu tanto no RS que foi impossível a colheita da soja (soja chuvada ou apodrecendo nas lavouras), causando uma das maiores frustrações da agricultura gaúcha.
Um dos legados da “Enchente de 41”, para Porto Alegre, foi a chamada cortina de proteção, o popular/famigerado muro da Avenida Mauá, construído entre 1971 e 1974.
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