Jorge Luis Borges, valendo-se de teorias científicas, diga-se, das primeiras décadas do século XX (quando não anteriores), criou páginas geniais. Autênticas transmutações literárias de ideias físicas ou matemáticas, às vezes de forma incrivelmente direta, aparecem em ensaios e contos como La perpetua carrera de Aquiles y la tortuga, Avatares de la tortuga, La loteria en Babilonia, El libro de arena e, especialmente, em La Biblioteca de Babel. A concepção borgeana de biblioteca (verbi gratia de universo) como ilimitada e periódica (os mesmos livros repetindo-se na mesma desordem, que acaba implicando em ordem), com vistas a superar o problema de que o número de obras possíveis de serem escritas com os sinais gráficos conhecidos, apesar de vastíssimo, não é infinito, sendo, fisicamente, uma impossibilidade.
Aceitar a ideia de uma biblioteca finita é algo inconcebível para Borges. Ele buscou conciliar, na sua versão, a finitude dos livros possíveis com a não delimitação de fronteiras para a biblioteca (universo), por meio dos conceitos de ilimitado e de periódico. Fato que um eterno viajante, percorrendo essa biblioteca, em qualquer direção, acabaria constatando, ao longo dos séculos, ao deparar-se com os mesmos livros. Uma solução, digamos, de natureza topológica. O exemplo clássico é o da superfície de uma esfera que, embora sendo finita, não tem limites demarcados. Uma pessoa cujo universo seja essa esfera, sem noção do espaço exterior, poderia caminhar eternamente sobre a mesma, sem jamais encontrar o seu fim. A conclusão de que a topografia da superfície se repete ilimitadamente, sendo, portanto, periódica, embora falsa, é esperável.
Borges, na sua fantasia e à luz de seus conhecimentos de ciência (forjados como estudante em Genebra, de 1914 a 1918), criou a biblioteca total sob o pressuposto do ilimitado (o universo em expansão). Como já dito, essa concepção é, fisicamente, impossível (não caberia no universo conhecido). Então, a indagação que fica é a seguinte: haveria outra forma, hoje, de escrever a biblioteca de Babel? Resposta: sim, tomando-se um caminho diametralmente oposto ao de Borges: em vez de expansão rumo ao ilimitado, faz-se a opção pelo reducionismo.
A nova biblioteca de Babel, assim, seria escrita nos domínios das nanociências, em que leis físicas diferentes daquelas que estamos familiarizados atuam, conferindo inusitadas propriedades à matéria. Na escala nanoscópica (dimensões da ordem de um bilionésimo de um metro = nanômetro), possibilitaria, por exemplo, se não a biblioteca total de Borges, pelo menos a disponibilização, em espaço reduzido, de uma coleção formada por todos os títulos publicados no mundo até hoje. Algo aparentemente inimaginável, mas que, acreditando ou não, estamos perto de conseguir.
Havendo um jeito de escrever pequeno, conforme Richard Feynman (1918-1988), com técnicas relativamente simples, também é possível a leitura. Para a escrita, bastaria inverter o princípio dos microscópios, reduzindo em vez de ampliar. Um microscópio óptico tem sua potência amplificadora limitada pelo comprimento de onda da luz visível. Por sua vez, um microscópio eletrônico utiliza elétrons, que tendo comprimento de onda muito menor do que o da luz, pode mostrar objetos ínfimos. No território da microscopia eletrônica (transmissão, varredura e tunelamento), é possível a obtenção de imagens na escala atômica, da ordem de 0,2 nanômetros, em duas ou três dimensões.
Que aconteceria caso tudo o que foi publicado no mundo, até hoje, fosse impresso em escala nanométrica? Simplesmente toda a informação que a humanidade já registrou na forma escrita poderia ser transferida para um panfleto (estilo anúncio de ofertas dos supermercados), não escrito em código, mas na forma de reprodução das imagens e estampas originais e tudo o mais, sem perder resolução. Todas as bibliotecas de Passo Fundo, por exemplo, poderiam ser armazenadas em uma única ficha (menor do que um cartão de crédito). Seria a realização do sonho da biblioteca total de Borges e, possivelmente, a extinção dos bibliotecários imaginários, consultando o catálogo dos catálogos.
Coluna originalmente publicada em 08/09/2011.
SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon.