OPINIÃO

O Fogo de Chargaff

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Jim Watson e Francis Crick não alcançariam a fama e o reconhecimento do mérito pela descoberta da estrutura do DNA, vista por muitos como o mais relevante achado científico do século 20, impunemente. Além das acusações dos amigos e simpatizantes de Rosalind Franklin, de que se beneficiaram do trabalho dela, sem o seu conhecimento (o caso da foto 51) e nem lhe deram o devido crédito, enfrentariam, paralelamente, a amargura de Erwin Chargaff, que no seu livro de memórias, publicado em 1978, Heraclitean Fire: Sketches from a Life Before Nature (O Fogo de Heráclito: Ensaios de uma Vida Diante da Natureza), repetindo uma pregação antiga, cobrou, da comunidade científica, um maior reconhecimento da sua contribuição no desfecho da questão elucidada por Watson e Crick, em 1953.

Erwin Chargaff (1905-2002), bioquímico austríaco (nasceu em Czernowitz, província que pertencia ao império Austro-Húngaro e atualmente faz parte da Ucrânia) radicado nos EUA desde os anos 1930 (deixando para trás as atrocidades do nazismo), fez uma carreira, reconhecidamente, bem-sucedida junto a Universidade Columbia. A principal contribuição de Chargaff na corrida pela descoberta da estrutura do DNA foi, por meio da técnica de cromatografia em papel, ter obtido uma correta caracterização química dessa substância e ter determinado as relações entre os pares de bases (A e T, G e C), que em escala molar, molécula a molécula, seriam bem próximas da unidade. Usou, para isso, o embasamento do trabalho seminal produzido pelo grupo de pesquisa do Laboratório do Instituto Rockefeller de Nova York (o clássico relatório de Avery, Macleod e McCarty, divulgado em 1944), em que ficou demonstrado, sem qualquer sombra de dúvida, que o DNA era o princípio transformador, sendo assim o material genético por excelência. A partir de amostras de DNA extraídas de várias espécies, Erwin Chargaff e colaboradores identificaram, além da relação de proporcionalidade (1:1) entre as quatro bases (A e T, G e C), que essas, mesmo mantendo-se constantes em todos os tecidos de uma mesma espécie, variavam de uma espécie para outra.

No seu livro de memórias, Erwin Chargaff, com a erudição peculiar de um homem que dominava pelo menos 15 idiomas, destilou veneno em relação aos pares da comunidade científica e deixou transparecer toda a sua decepção com a Universidade Columbia, instituição que o acolheu nos EUA e o projetou internacionalmente. Inclusive, expressou vontade que, na eventualidade da sua morte, o único pedido era que não fosse lembrado pela Universidade Columbia. O ressentimento de Chargaff com a Universidade Columbia remonta a sua aposentadoria, em 1974. Reclamou que, na ocasião, ele foi despejado da sala que ocupava no edifício principal e alocado em um prédio afastado, que não aceitaram mais financiar suas pesquisas e que sua renda como aposentado baixou para 1/3 do tempo da ativa. A obra toda é uma apologia a sua vida e deve ser lida com cautela, pois paralelamente ao tom de nostalgia, sobressai-se, subliminarmente, uma tentativa de revisão da história.

Chargaff insistiu na tese que foi a partir da conversa que teve com Francis Crick e James Watson, em Cambridge, na última semana de maio de 1952, que eles chegaram ao modelo de dupla-hélice para a estrutura do DNA. Os dois, na ocasião, eram desconhecidos e, cientificamente, insignificantes perto do status que Erwin Chargaff gozava como professor da Universidade Columbia, conferencista internacional e professor convidado do Intituto Weizmann em Israel. Crick nunca tinha ouvido falar em Chargaff e Watson havia lido alguma coisa escrita por ele. Seguramente, Chargaff sabia mais sobre DNA que os dois juntos. Aliás, isso ele deixou claro no seu livro de memórias, escrevendo que, no referido encontro, Watson e Crick demonstravam não saber muito sobre qualquer coisa. No entanto, por ironia do destino, nove meses depois, foram eles, Jim Watson e Francis Crick, que desvendaram o segredo da vida.

Horace Freeland Judson (1931-2011), o principal historiador da biologia molecular, num anexo da 2ª edição do clássico The Eighth Day of Creation: Makers of the Revolution in Biology (1996) descreve uma conversa que teve com Erwin Chargaff, em 1972, em que perguntou se ele tinha, na época, bem clara a percepção das consequências da sua descoberta da relação 1:1 entre as quatro bases que formavam o DNA (A e T, G e C). A resposta que obteve foi: Não e Sim. Realmente, eu nunca pensei ou concebi um modelo de dupla-hélice, disse. Todavia, reiterou que a descoberta decorreu da conversa que teve com Watson e Crick, naquele maio de 1952, quando, inclusive, falou sobre as regras de pareamento e de complementaridade.

Watson e Crick usaram Linus Pauling, não Chargaff, como referência para a construção do seu modelo tridimensional de dupla-hélice. Inclusive, foi um ex-orientado de Pauling na Caltech/EUA, Jerry Donohue, que, cumprindo programa de pós-doutorado no Laboratório Cavendish e alojado na mesma sala que Watson e Crick, corrigiu o equívoco que esses cometiam usando representações das bases copiadas de livros de química errados. Foi essa correção que possibilitou o arranjo das bases em uma dupla-hélice. Donohue tem sido taxativo, no que tange a versão de Chargaff: “Poucas pessoas podem dizer se isso é verdade ou não. Eu sou uma delas. E categoricamente afirmo que isso não é verdade”.

Numa cruzada amargurada em busca do que julgava ser um reconhecimento mais adequado da sua contribuição para a descoberta da estrutura do DNA, Chargaff desviou o foco de atenção, tornou-se um crítico ácido do papel da ciência no mundo e falhou em não entender a relevância daquilo que ele realmente fizera. Foi a sua descoberta, por exemplo, que tornou possível a biologia molecular. E isso já é mais que suficiente para que rendemos nossos respeitos à memória de Erwin Chargaff.

(Coluna originalmente publicada em 20/10/2011)

SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon: https://www.amazon.com.br/estranha-instituição-chamada-ciência-Borgelatria-ebook/dp/B09Q25Q8H8

 

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