OPINIÃO

O testamento da bibliotecária

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Um dia, para todos nós, haverá de chegar a hora, tão temida, de dizer adeus e dar por encerrada a nossa missão aqui na Terra. Para alguns, o destino reserva a coincidência de que, dia e mês do nascimento, separados por um intervalo de anos, sejam os mesmos da morte. Esse foi o caso de Maria Regina Cunha Martins, conhecida em Passo Fundo como a bibliotecária da Embrapa Trigo e a mulher das causas sociais. Ela morreu em Porto Alegre, no dia 1º de junho de 2023, por ocasião do aniversário de 67 anos, vitimada por um melanoma, contra o qual esteve sob tratamento médico nos últimos três anos.

Regina Martins nasceu em Porto Alegre, filha do casal Jaime Gomes Martins (falecido) e Lecy Tereza Cunha Martins, mas viveu a infância e a adolescência em Rosário do Sul, cidade que identificava como a sua terra natal. Depois, retornou a Porto Alegre, formando-se em Biblioteconomia na UFRGS, em 1978, e, após breve passagem pelas Faculdades Canoenses (atual ULBRA), ingressou na Embrapa, em 16 de junho de 1980, radicando-se em Bento Gonçalves, onde assumiu como bibliotecária da Embrapa Uva e Vinho (na época Embrapa UEPAE de Bento Gonçalves). Em julho de 1992, foi transferida para Passo Fundo, e comandou, com maestria, até a sua aposentadoria, em 9 de dezembro de 2019, a Biblioteca da Embrapa Trigo.

Infelizmente, os planos para a vida após a aposentadoria, que incluíam uma longa temporada de viagens pela Europa, acabariam frustrados. Primeiro, de triste lembrança, sobreveio a pandemia da Covid-19 e, depois, a descoberta de um melanoma na perna, que deu início ao périplo das cirurgias, das imunoterapias, hospitalizações, viagens a São Paulo, até a derradeira participação num projeto internacional de melanoma, no Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre.

Sobre a personalidade de Regina Martins, sobressaiam-se traços de arroubo e paixão em tudo que se envolvia e, diga-se, sem qualquer sinal de arrefecimento, até a chegada da hora derradeira. Foi assim o seu entusiasmo e ativismo nas festividades alusivas à Embrapa e, especialmente, nas ações humanitárias que participava em Passo Fundo. Foi a primeira mulher a presidir o Rotary Clube Passo Fundo, em 1999, seguindo-se dois mandatos, em que se preocupou com o resgate da memória da organização e com a ampliação das ações comunitárias e com a impulsão do relacionamento internacional da entidade. Apoiadora incondicional da Liga Feminina de Combate ao Câncer de Passo Fundo, deu vida ao Caquito, o mascote do Centro Assistencial à Criança com Câncer (CACC), cujo personagem idealizou e vestia a fantasia, durante as campanhas de venda de tickets do Dia do McLanche Feliz. Além de participar, ativamente, da organização das tradicionais Festas das Mimosas, apoiadas pelo Clube Comercial, em benefício de entidades assistenciais.

Regina Martins incorporou, como poucos empregados, a cultura da Embrapa. Defensora incondicional da organização e da preservação dos acervos documentais das bibliotecas da Empresa. Sofria e lutava para que bibliotecas não fossem fechadas, tese defendida por aqueles que imaginam que tudo pode ser resolvido no mundo digital. O relatório que apresentou, quando da sua aposentadoria, sob o título “Biblioteca x Informação x Profissional bibliotecário” é, ao mesmo tempo, um libelo, contra o desvario dos que defendem o fechamento de bibliotecas, e um legado, deixado em testamento, para os que pensam o contrário. Deu destaque ao papel das bibliotecas como centro de documentação e dos bibliotecários como profissionais da informação. Conclamou por mais pessoal nas bibliotecas e mais verba para atualização de acervos. Afinal, frisou com a sua contumaz ênfase, “As bibliotecas armazenam a memória histórica, técnica e científica da Embrapa. Os acervos precisam ser preservados! Biblioteca é cultura, biblioteca é conhecimento, biblioteca é pesquisa!”. Que assim seja, Regina!

Nas exéquias de Regina Martins, realizada no Crematório Metropolitano, em Porto Alegre, não faltou emoção nas falas de despedida. Nas palavras do sacerdote que conduziu a cerimônia, era a “festa da cura”, que ela tanto queria celebrar, mas, no caso, a “festa da cura da alma”. Regina era uma pessoa muito intensa. No dia do seu aniversário, fazia questão de telefonar para os colegas e convidar para irem até a biblioteca e lhe darem um abraço. Invariavelmente, retribuía com uma fatia de bolo, uma xícara de chá ou um bombom. Por isso, espero que, no fatídico 1º de junho de 2023, alguém tenha conseguido dar o abraço que ela tanto reivindicava e que tenha, pelo menos, conseguido retribuir com “obrigada e adeus”.

Regina Martins deixou a prantear a sua memória, o marido João Carlos Haas, a mãe Lecy Tereza e o cachorrinho Tommy, além de irmãos, cunhados, sobrinhos, primos e uma legião de colegas e amigos. Requiescat in pace, Regina!

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