OPINIÃO

Entendendo a falácia do promotor

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Quem, por dever de ofício, tem a obrigação de tecer juízo de valor e, não raro, se incumbe dos papéis de acusador ou de defensor, tem que tomar muito cuidado com a interpretação de evidências estatísticas para não incorrer em um tipo de equívoco que, nos meios jurídicos, depois do artigo de William Thompson & Edward Schumann, Interpretation of Statistical Evidence in Criminal Trials, publicado no periódico Law and human behavior (v. 11, n. 3, p. 167-187, 1987), recebeu o nome de falácia do promotor, pelo qual é preponderantemente conhecido, embora se admita, por similaridade, bastando a mudança de perspectiva, como equivalente a falácia do defensor.

Em se tratando de situações do cotidiano que envolve probabilidade, esse misto de sentimento e razão, que costumamos chamar de intuição, é de pouco valor, pois, muito frequentemente, nos conduz ao erro. Intuitivamente, pessoas instruídas, conforme escreveu Alberto Rojo, em magistral artigo sobre esse tema publicado no jornal Critica de la Argentina (26/01/2010), mesmo tendo cumprido o programa de uma disciplina de física clássica em um curso superior qualquer, são capazes de jurar que a Terra é plana, que o Sol nasce e que um corpo mais pesado cai mais rápido. É nessa hora que o conhecimento se torna relevante para diferenciar quem sabe daquele que finge que sabe (ou sequer sabe que não sabe). Na prática, costuma-se falar em probabilidade nas situações cujos resultados não temos como prever com absoluta precisão. E quando o assunto é probabilidade há, pelo menos, duas escolas dominantes de pensamento. Uma que é professada pelos adeptos da frequência de ocorrência e outra pelos chamados bayesianistas, que defendem a linha das probabilidades condicionadas. É nessa última que se insere a falácia do promotor.

Foi o reverendo Thomas Bayes que, em artigo publicado postumamente no ano de 1794, trouxe à luz o conceito de probabilidade condicional. Pela sua teoria, toda probabilidade é condicional. Ou, matematicamente, se X e Y são eventos, então podemos escrever a probabilidade condicional de X, dando Y, como sendo P (X/Y). E, nesse ponto, a confusão lógica que é causada, deliberadamente ou por ignorância, em função da inversão entre essas duas probabilidades, tomando-se, involuntariamente ou por conveniência, P (Y/X) em vez de P (X/Y), resulta, na área jurídica, no caso da falácia do promotor/defensor e, em medicina, no fenômeno dos falsos positivos.

São exemplos famosos de interpretação equivocada de evidências estatísticas em julgamentos, citados no artigo de Alberto Rojo, a condenação de Sally Clark, na Inglaterra, em 1988, pela morte de dois filhos recém-nascidos (falácia do promotor), e a absolvição de O.J. Simpson, em 1995, nos EUA (falácia do defensor). A defesa de Sally Clark argumentou que nos dois casos, primeiro um bebê de 11 semanas e depois o outro de 8 semanas, tratava-se da síndrome de morte súbita. A promotoria afirmou que isso era estatisticamente muito improvável, já que a proporção de bebês que morrem de morte súbita e 1 em 8.500, sendo a probabilidade de duas mortes sucessivas 1 em 73 milhões. A mãe foi condenada. O tempo passou até que, em outubro de 2011, a Royal Statistical Society publicou uma declaração apontando que o argumento que serviu de base para a condenação de Sally Clark era uma típica falácia do promotor, uma vez que as mortes súbitas, em casos desse tipo, não são necessariamente independentes, e se o primeiro filho morre de morte súbita, a probabilidade de que o segundo morra pela mesma causa pode ser considerável. O artigo é de 2011, porém Sally Clark havia sido libertada em 2003. O astro do futebol americano e ator O.J. Simpson fora acusado de matar sua mulher Nicole Brown e o amigo dela Ronald Goldman. Um dos argumentos fortes do promotor público era que Simpson batia em Nicole e que agressores desse tipo costumam chegar ao assassinato. Na defesa, o renomado advogado Alan Dershowitz, usando um argumento estatístico falacioso (falácia do defensor nesse caso), convenceu os jurados. Segundo ele, uma vez que é baixíssima a proporção (1 em 2.500 ou 0,04 %) das mulheres abusadas que são depois assassinadas pelo seu abusador, o argumento do promotor era estatisticamente irrelevante. Dershowitz sabia o que estava fazendo e inverteu a lógica do promotor. Uma vez que Nicole foi assassinada, a pergunta correta seria: se uma mulher foi assassinada, qual é a probabilidade de que ela tenha sido vítima de seu abusador? E não qual a probabilidade que uma mulher vítima de violência seja assassinada? Na lógica correta para o caso, a situação muda radicalmente, pois 90% das mulheres assassinadas nos EUA são vítimas de seu abusador.

Em 17 de Julho de 1995, O. J. Simpson foi inocentado das acusações de homicídio, com base na dúvida razoável. Treze anos depois, em 2008, Simpson foi preso em Las Vegas, acusado de roubo, sequestro e formação de quadrilha. Dessa vez não contou com o beneplácito da dúvida e foi considerado culpado, recebendo uma pena de 33 anos de detenção.

(Coluna originalmente publicada em 11/08/2011)

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