OPINIÃO

A mala foi só um detalhe

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Às vésperas da 16ª Reunião da Comissão Brasileira de Pesquisa de Trigo e Triticale, que aconteceria em Guarapuava, PR, de 25 a 27 de julho de 2023, eu não conseguia controlar a ansiedade, pela expectativa de voltar a participar desse evento. Nos últimos 30 anos, à exceção de 2022, eu fora frequentador assíduo dessas reuniões. Naquele ano, faltando 3 dias para o início do principal encontro da pesquisa de trigo no Brasil, fui diagnosticado como portador do vírus SARS-CoV-2, o famigerado coronavírus causador da Covid-19, e, embora ocupasse a presidência da reunião, tive de abdicar da participação no evento, que foi realizado em Brasília, DF, de 28 a 30 de junho de 2022.

Iniciada as tratativas da viagem, em 2023, o grupo de participantes da Embrapa Trigo foi distribuído em quatro veículos, com o deslocamento, de Passo Fundo para Guarapuava, previsto para a primeira hora da manhã do dia 24 de julho. Fui escalado, inicialmente, no veículo que levaria o pessoal da área de comunicação e transferência de tecnologia. Diante do impasse, com alguns preferindo sair no começo da tarde e outros, meu caso, no início da manhã, foi me dada a opção de trocar de veículo. Havia um veículo que sairia pela manhã e, até aquele momento, estava ocupado por duas pessoas, que, doravante, serão chamadas apenas pelas iniciais do primeiro nome: o colega A e a colega V. Fui falar com eles e a acolhida à minha companhia foi total, ressalvadas duas condições, que foram expostas por A: - Você não dirige. Sem objeção, pois a minha opção, em viagem, é sempre não dirigir. Mas, pela assertividade, tive razões para supor que gozava da fama de mau motorista nas hostes da organização. E a segunda: - Você terá de viajar no banco traseiro. Essa camioneta chacoalha muito e nós enjoamos. Os dois são jovens e enjoo é algo comum nos jovens. Compreensível. Não tenho problema com enjoo e aproveitaria o tempo da viajem para pôr em dia leituras atrasadas.

Seguindo o combinado, eu de posse de um exame, realizado na véspera, que ostentava resultados não reagentes (negativos para coronavírus, Influenza A e Influenza B), às 9h, saímos. Malas acomodadas na carroceria da camioneta, cabine dupla. O colega A e a colega V ocupando os bancos dianteiros e eu no assento traseiro. Mal saímos de Passo Fundo, abri a mochila que levava comigo e tomei de mão o livro “Geografía de la novela”, do Carlos Fuentes, de 1993, que há tempos intencionava ler. Mas, ainda não havíamos cruzado a divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina e eu descobriria, na prática, que A e V tinham razão, leitura e viagem, no assento traseiro daquela camioneta, não formavam uma boa combinação.

A leitura, nessa situação, foi impossível. Assim, sem opção, não tive como não prestar atenção na conversação que A e V travavam e, até, de tempos em tempos, imiscuir alguma opinião. As quase quatro décadas que estão a separar o início das nossas jornadas aqui na Terra ficariam, para mim, bem evidenciadas. Entre copiosos goles de Coca-Cola, A e V revisitaram o universo dos Geeks e dos Nerds, alternando discussões sobre o papel da tecnologia digital avançada com detalhes poucos conhecidos sobre os cultuadores de Star Wars, dos filmes da Marvel, RPG, games digitais e obras literárias, cujos autores passam longe da Academia Passo-Fundense de Letras. Aprendi muito, confesso!

Em General Carneiro, PR, parada para o almoço. Por uma questão de segurança, as malas foram deslocadas da carroceria para a cabine da camioneta. Na volta, tive o azar de pegar uma fila para o pagamento das despesas, cujo sistema digital da caixa de atendimento saiu do ar. Atrasei, enquanto A e V desvencilharam-se. Quando cheguei no veículo, A e V aguardavam com certa impaciência. Perguntei: - E as malas? A respondeu: - Coloquei na carroceria de volta.

Viagem que segue, agora com V na direção. Um trecho de pista irregular nos aguardava e a trepidação me fez entender, de forma mais clara, porque A e V haviam refugado o assento traseiro. Alguns minutos depois, chegamos ao trevo de acesso a Bituruna, na BR 153, e tomamos rumo a essa cidade. E foi, naquele local, que começou a primeira das muitas surpresas que marcariam, indelevelmente, essa viagem.

Na saída do trevo de acesso a Bituruna, inicia uma pequena elevação do terreno. Provavelmente, pela trepidação, e, seja por defeito ou por ter sido mal fechada, a tampa traseira da carroceria abriu, as malas deslizaram pelo assoalho e acabaram estatelando-se no asfalto. Evidentemente, não vimos e seguimos em frente. Atrás de nós vinha um automóvel branco, que nos acompanhou por 50 km, sem dar qualquer sinal de luz ou sonoro de buzina, até que nos ultrapassou, abriu a janela do caroneiro e gritou: - As malas caíram lá no trevo! Paramos e constatamos, no ato, carroceria com a tampa aberta e sem malas. E toca retornar 50 km. Chegamos de volta no trevo de acesso a Bituruna e nada das malas. Vinha passando uma viatura da Polícia Rodoviária do PR, fizemos sinal, pararam, os policiais pareciam receosos em se aproximar, nos identificamos, viram o carro oficial da Embrapa, contamos a história, anotaram nossos dados e, caso surgisse alguma notícia de malas perdidas, nos comunicariam.

Deveras chateados, só de imaginar o transtorno que nos aguardava, ao chegar a Guarapuava, ter de sair em busca de roupas e de todo o resto necessário para uma estada de 4 dias, seguimos a viagem. A região, para completar a tragédia, é quase desprovida de sinal de celular, na maior parte do trajeto. Num ponto alto da estrada, avistamos o que seria um bar ou armazém. Eu sugeri parar e perguntar se alguém, por acaso, havia encontrado duas malas perdidas na estrada. Paramos. E foi nesse instante que o celular de A tocou. Era a mãe dele. Assustada! Queria saber onde ele estava. Havia recebido uma ligação do Sr. Y, motorista de caminhão, dizendo que tinha encontrado duas malas, perdidas na rodovia para Bituruna, e ligara para o número que constava na etiqueta de uma delas. E ela estava na dúvida se era verdade ou golpe. Felizmente, não era golpe. Também, quase imediatamente, entraram, no meu WhatsApp, várias mensagens dos colegas de Passo Fundo, que estavam alucinados em busca de contato, pois receberam a notícia que haviam achado as nossas malas caídas no asfalto, mas não o carro e, diziam os mais pessimistas, nem os corpos. Estávamos desaparecidos! E dá-lhe explicar a mesma história, inúmeras vezes.

O Sr. Y havia deixado um telefone de contato para a mãe de A. Então começou um novo périplo: localizar o Sr. Y, numa região de baixa cobertura de sinal de celular. Chegamos a Bituruna e nada do Sr. Y. Paramos na frente da Igreja. Quem sabe esperando um milagre. Novo telefonema para a mãe de A. Reconfirmado o número deixado pelo Sr. Y. E, eis que toca o telefone de A. Era o Sr. Y retornando as inúmeras chamadas perdidas. Ele estava em Bituruna e com as malas. Marcamos encontro num restaurante indicado por ele. Fomos até lá. Chegamos antes. Minutos depois ele apareceu. Devolveu-nos as malas. Agradecemos e o gratificamos devidamente. Foi um gesto que me marcou pelo exemplo. Aquele homem, empregado de uma empresa, nunca cogitou receber qualquer recompensa. E muito menos ficar com o que não lhe pertencia. E assim, recuperadas as malas, de almas leves, com o atraso causado pelo percalço, chegamos a Guarapuava, em vez das 16 h, inicialmente presumidas, por volta das 20 h.

Eu, dessa viagem, além de uma mala com a tampa trincada, voltei com a confiança renovada nos seres humanos (em alguns deles, pelo menos). E, acrescentaria, quase um especialista em Nerds e Geeks.

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