Os devotos do “negacionismo das previsões climáticas” costumam se regozijar com a instigante história do El Niño que, apesar de ter sido previsto, com pompa e circunstância, nunca aconteceu. Esse curioso caso foi analisado, em detalhes, por Michael J. McPhaden e colaboradores, e publicado no Boletim da Sociedade Americana de Meteorologia (BAMS), em outubro de 2015, sob o título “The curious case of the El Niño that never happened”.
O fenômeno El Niño – Oscilação Sul (ENOS), inquestionavelmente, é a principal fonte, atualmente conhecida, causadora de anomalias climáticas extremas - sejam estiagens/secas, inundações, ondas de calor, etc. - em diversas partes do mundo, com impactos ambientais e econômicos, que podem se enquadrar como transientes, recuperáveis rapidamente, ou persistentes, responsáveis por prejuízos econômicos vultosos.
A palavra El Niño, admite-se, debutou, numa publicação científica, em 1892, na comunicação feita pelo capitão naval Camilo Carrillo, conforme consta no Boletim da Sociedade Geográfica de Lima. Carrillo mencionou o fenômeno como uma corrente de águas quentes no Oceano Pacífico, na costa da América do Sul, bem conhecida pelos pescadores, que, por surgir nas proximidades do Natal, se referiam a ela como “Corriente del Niño”, numa clara alusão ao Menino Jesus. Em alguns anos, essa corrente persistia por períodos mais longos e, em associação, trazia chuvas abundantes e diminuição da captura de peixes, especialmente de anchovetas, na região.
Até a primeira metade do século XX, El Niño foi visto como um fenômeno local, restrito à costa Oeste da América do Sul. Nos anos 1960, depois do El Niño de 1957/58, que coincidiu com o chamado Ano Geofísico Internacional, sobre cujos dados, o meteorologista Jacob Bjerknes se debruçou, ganhou o contorno da bacia do Oceano Pacífico (OP), por meio de mecanismos de retroalimentação envolvendo a ligação Oceano-Atmosfera, via o enfraquecimento dos ventos alísios e a elevação da temperatura da superfície das águas. Os resultados são os efeitos conhecidos, sobre a circulação atmosférica de Walker (zonal/oeste-leste), de Hadley (meridional/sul-norte) e a mudança na posição e intensidade da corrente de jato.
E sobreveio o grande El Nino de 1972/73 e o colapso da indústria pesqueira do Peru (nesse rastro a soja ganharia espaço como substituta da proteína derivada de peixes na produção de rações para alimentação animal). Ressurgiu o interesse por El Niño, na comunidade científica. O paradigma vigente, na época, baseado na teorização e Bjerknes, era que o relaxamento dos ventos alísios de sudeste, na costa do Peru e do Equador, diminuía a ressurgência das águas frias, do fundo do Pacifico, e, assim, se dava o aquecimento das águas. O oceanógrafo Klaus Wyrtki, da Universidade do Havaí, se contrapôs a essa tese, com a hipótese que, de 1 a 2 anos antes do estabelecimento do El Nino, os ventos alísios seriam mais fortes do que de costume, empurrando as águas quentes para o extremo Oeste da bacia do Pacifico, e posteriormente, com o relaxamento desses ventos, haveria o deslocamento dessas águas aquecidas rumo ao centro e à costa da América do Sul. Seria, o que se conhece, atualmente, como a propagação para leste de uma onda equatorial de Kelvin.
Nesse interim, William Quinn, da Universidade do Estado do Oregon/EUA, estava desenvolvendo um sistema de previsão de El Niño com base no Índice de Oscilação Sul (que mede a diferença normalizada da pressão ao nível do mar entre o Tahiti, na Polinésia Francesa, e Darwin, na Austrália). Uma variável que integra a força dos ventos alísios sobre o Pacífico. Em outubro de 1974, Quinn apresentou a sua previsão de expectativa de El Niño, a partir do começo de 1975, e Wyrtki a sua teoria de formação do El Niño, numa conferência sobre oceanografia em Lake Arrowhed, na California. Surgiu a ideia de testarem a teoria. Wyrtky, que gozava de elevada reputação nos meios científicos, redigiu uma proposta que foi financiada pela National Science Fundation/USA, para que, abordo de um navio da Universidade do Havaí, pudesse ser determinada a origem das águas anomalamente quentes de El Niño. E assim fizeram. Uma viagem em fevereiro e março de 1975. E outra em abril e maio daquele ano. Detectaram um leve aquecimento, na primeira, mas nenhum na segunda. Não houve El Niño em 1975 (pela reanálise da NOAA, inclusive, predominou La Niña durante todo o ano de 1975). Mas, de qualquer forma, a iniciativa foi um marco nas previsões de El Niño, especialmente, pelo legado deixado nas muitas indagações científicas que foram postas, para serem futuramente respondidas, no artigo seminal que publicaram na Science, em 1976.
Ficou a lição: um resultado negativo em uma investigação científica pode ser tão ou mais útil do que um positivo.
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