OPINIÃO

Mortes em Viena

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Aquele velho casarão, no centro de Viena, serviu de palco para duas mortes que entraram para a história. A primeira foi a de Ludwig van Beethoven. E a segunda a do jovem filósofo, psicólogo e médico Otto Weininger. Beethoven, “a criatura completamente indomável”, no dizer de Goethe, debilitado por várias enfermidades, morreu, naturalmente, em 26 de março de 1827. Passados 76 anos, na casa em que Beethoven morrera, foi a vez de Otto Weininger, com pouco mais de 23 anos, no outono de 1903, atentar contra a própria vida.

Um tiro e um bilhete deixado sobre a mesa (“Tudo o que escrevi foi escrito com má intenção. Mato-me para não matar um outro. Só um criminoso comum espera seu carrasco. Um criminoso de ordem moral executa a si mesmo”) selariam o destino de Weininger. Por trás de tudo, uma das maiores batalhas da psicanálise sobre a paternidade de ideias, que, segundo os envolvidos, iriam revolucionar o conhecimento vigente. Não era para tanto (o tempo mostrou isso), mas a disputa pública marcou, de forma indelével, a vida dos protagonistas desse conflito sobre roubo de ideias: os médicos Wilhelm Fliess, Sigmund Freud, Otto Weininger e Hermann Swoboda, e o bibliotecário da Real Biblioteca de Berlim, Richard Pfenning.

Sigmund Freud e Wilhelm Fliess eram amigos e colaboradores, trocavam hipóteses teóricas e pontos de vista clínicos. Tinham especial interesse pela questão da sexualidade. E, mesmo depois do rompimento, que culminou no escândalo do duplo plágio, Freud não deixou de reconhecer a originalidade das idéias de Fliess. Foi esse rompimento que, segundo alguns, provavelmente precipitou a criação das “noites de quarta-feira”, em Viena, em 1902, na casa de Freud. O Dr. Freud precisava substituir ao público único que Fliess encarnara até então.

Tudo teria começado quando, em outubro de 1900, Hermann Swoboda, em análise com Freud, ouve este último fazer uma interpretação de suas fantasias, que se refere à “disposição bissexual de cada ser humano”. Ele fala disso ao seu amigo Otto Weininger. Então, no outono de 1901, Weininger procura Freud, pedindo para ele ler o manuscrito de “Sexo e Caráter” (que se intitulava então “Eros e Psique”), esperando a recomendação do livro para um editor. Sigmund Freud emite um julgamento desfavorável. Mesmo assim, Weininger consegue publicar o seu livro em maio de 1903, e se suicida a 4 de outubro do mesmo ano. O livro de Weininger faz sucesso e Fliess irá lê-lo na primavera de 1904, depois de ter recebido a obra de Swoboda, “Os Períodos do Organismo”, publicada no início de 1904. Muita gente andou acusando Weininger de plagiário: começando com o próprio Hermann Swoboda. Também P.J. Moebiu o acusava de ter roubado a idéia e o título da obra. Foi no meio dessa fumaceira toda que Otto Weininger se suicidou.

Lendo o livro de Weininger, na primavera de 1904, Fliess fica surpreso em encontrar ali as suas idéias, particularmente no que se refere à dupla sexuação permanente e à dedução da atração sexual. A ideia de plágio começa a tomar corpo em Fliess, que estabelece a ligação entre os nomes de Weininger e Swoboda, e, a partir deste último, chegou até Freud. Estava se fechando o triângulo Freud-Swoboda-Weininger, pelo menos na mente de Wilhem Fliess.

Começaram a estremecer as relações entre os nomes de Fliess, Weininger, Swoboda e Freud. Estimulado por Richard Pfenning, um especialista em plágio científico, o caso do duplo plágio tornou-se público em janeiro de 1906, quando da publicação quase simultânea de um acréscimo no final do “Curso da vida”, de Wilhelm Fliess, intitulado “Em minha própria causa”; e de um panfleto de Richard Pfenning, “Wilhelm Fliess e seus descobridores imitadores, Otto Weininger e Hermann Swoboda”. No “Em minha própria causa”, Fliess acusa Freud de, por inveja, preferir dar a outro a ideia da descoberta da dupla sexuação, passando-a discretamente para Swoboda que transferiu parte dela para Weininger e se apoderou de outra. Wilhelm Fliess nunca perdoaria Freud, tendo, durante o resto de sua vida, recorrido ao “Em minha própria causa”, para acusá-lo de desonestidade intelectual.

Coluna originalmente publicada em 10/11/2003.

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