Ouso afirmar que, antes dos anos 1970, ninguém, de sã consciência, chancelaria a sentença de que, no caso dos danos causados por geadas às plantas, a responsabilidade, em vez de recair sobre a geada, poderia ser atribuída às bactérias presentes nos tecidos dos vegetais. Foi a descoberta, no início da década de 1970, do processou de nucleação biológica de gelo, que lançou luzes sobre o fenômeno de congelamento da água sob temperaturas relativamente “elevadas”.
A água pura pode permanecer no estado líquido até temperaturas próximas de - 40 ºC. No entanto, a presença de alguns compostos, orgânicos e inorgânicos, pode desencadear o processo de formação de gelo a temperaturas tão “elevadas” quanto - 1,0 ou - 2,0 ºC. A fascinante história da descoberta e do papel ambiental das bactérias nucleadoras de gelo foi recentemente descrita, com detalhes inéditos, por Steven Lindow, microbiologista da Universidade da Califórnia, campus de Berkley, um dos protagonistas de escol dessa saga, em artigo publicado na revista Phytopathology (v.113, n.4, p.605-615, 2023).
Na Universidade de Wyoming, o grupo liderado por Gabor Vali queria entender o papel das partículas presentes na atmosfera no processo de formação de gelo nas nuvens e sua influência nas precipitações de neve ou chuva. Partículas com o potencial de catalisar o processo foram identificadas. Muitos acreditaram, pela abundancia de poeiras na atmosfera, que o solo seria a principal fonte. Levantamentos apontariam que solos com maior conteúdo de material orgânico, ricos em restos vegetais em decomposição, eram os principais fornecedores desses núcleos de congelamento. Começou a especulação de que poderia haver algum processo biológico envolvido. Isolaram-se estirpes de bactérias, depois identificadas como da espécie Pseudomonas syringae, com o potencial de agir como núcleos de congelamento a temperaturas acima de - 5,0 ºC. Nesse mesmo tempo, na Universidade de Wisconsin, os professores Dean Arny e Chris Upper tentavam explicar o fenômeno observado, em 1964, de algumas plantas de milho, que haviam sido infectadas com o fungo Helminthosporium turcicum, terem sido danificadas por geada e as plantas não inoculadas nada terem sofrido. Todavia, apenas a presença do fungo nas plantas danificadas pela geada não era suficiente para explicar o que acontecera. É ai que entra Steven Lindow, como estudante de doutorado e encarregado de descobrir o agente causador daqueles danos. Lindow isolou a estirpe #31, de P. syringae, que tinha a faculdade de aumentar a sensibilidade do milho à geada. Estava sendo fechado o círculo, com a descoberta prévia de Wyoming. Nesse interim, entre pesquisas bem delineadas, entrou o acaso, com o freezer, onde eram armazenadas as bactérias, que parou de funcionar e a maioria das bactérias descongelou, exceto a estirpe #31. O resto é historia. A partir de então houve a identificação de bactérias que são ativas ou não são para a nucleação de gelo, ampliação de estudos moleculares e a tentativa de uso dessa descoberta para o controle de geadas nas plantas cultivadas.
Parecia mais fácil do que se mostraria controlar geada nos cultivos sensíveis ao congelamento. Bastaria matar as bactérias? Não, pois, mesmo depois de mortas, as bactérias que possuem essa funcionalidade podem permanecer ativas. Usar o antagonismo entre bactérias, colonizando as plantas com estirpes que não possuem essa atividade. Essa solução foi pensada e testada nos EUA. Mas, espalhar organismos modificados na natureza com essa finalidade, e com resultados duvidosos, não seria simpático aos ambientalistas e nem aos órgãos reguladores.
Aos poucos, depois de centenas artigos publicados sobre o assunto e muito conhecimento molecular acumulado, a linha de pesquisa sobre controle de geadas nas plantas cultivadas, via a supressão da atividade de nucleação de gelo das bactérias, arrefeceu. Faço coro com Steven Lindow e acho que deveria ser retomada.
Na prática, a principal tecnologia derivada da descoberta da atividade biológica das bactérias na nucleação de gelo é um produto comercial usado na geração de neve artificial para fins recreativos. Também, com algumas restrições, mas de grande potencial, destaca-se o uso dessas bactérias na indústria de alimentos, especialmente em produtos congelados derivados de carne e na fabricação de sorvetes, em que, manter o congelamento, sem exigir temperaturas extremamente baixas, é vantajoso.
Para encerrar o assunto do super-resfriamento da água, valho-me da série “eu já fui como você”. Lembre-se da sua iniciação nas mesas de bar. A conversa fluindo e a cerveja descendo redonda. Alguém pede: - garçom, uma cerveja. E lá vem o simpático garçom segurando a garrafa, estupidamente gelada, com a serenidade de um monge budista, pela pontinha do bico. Num ritual perfeito, coloca a “loira suada” sobre a mesa. E você, como todo jovem numa hora dessas, afoito, estende a mão e pega a garrafa pelo bojo. Quase simultaneamente ao brado dos companheiros – NÃÃÃOOOOO! – o líquido congela. Que aconteceu? Você, de forma análoga às bactérias que são ativas para a nucleação de gelo, mecanicamente, perturbou o equilíbrio termodinâmico da cerveja supercongelada e catalisou o processo de formação de gelo. Inesquecível!
SUGESTÃO DO COLUNISTA: O livro “Ah! Essa estranha instituição chamada ciência” está disponível em versão Kindle na Amazon: https://www.amazon.com.br/estranha-instituição-chamada-ciência-Borgelatria-ebook/dp/B09Q25Q8H8