Alice deixou o país das maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland, de 1865), passou pelo país do espelho (Through the looking-glass and what Alice found there, de 1872), mergulhou de cabeça com o Dr. Freud e sua turma nos domínios da psicanálise, e, apesar das inúmeras tentativas do cinema, de reaproximá-la do universo infantil, pelas produções hollywoodianas do passado e o desenho de Walt Disney, foi encontrar um porto seguro, mais que em qualquer outro lugar, no mundo dos cientistas, em 1973, quando o biólogo evolucionista Leigh van Valen propôs a hipótese da Rainha Vermelha (Red Queen hypothesis).
A hipótese da Rainha Vermelha é uma metáfora, bem ao gosto da comunidade científica, que dá sustentação à teoria da coevolução entre espécies. Mudou a percepção de evolução como necessidade de adaptação ao ambiente. Por esta hipótese, a seleção natural decorre da coevolução entre espécies. É o caso da relação presa x predador, em que a evolução da presa, em termos de capacidade de escape, por exemplo, exige a evolução também do predador, em eficiência de ataque, a fim de evitar a sua extinção. Em outras palavras, para as coisas ficarem como estão (no mesmo lugar), as duas espécies evoluem simultaneamente ou coevoluem.
Não é difícil identificar que a hipótese da Rainha Vermelha foi baseada na célebre passagem de Alice no país do espelho, capítulo 2, em que, no tabuleiro de xadrez, a rainha em questão diz a Alice: “It take all the running you can do to keep in the same place”. Ou, conforme consta na memorável tradução/adaptação de Monteiro Lobato: “Aqui é preciso correr, como corremos para ficar no mesmo ponto. Para mudarmos de lugar, seria preciso que corrêssemos o dobro.” Em síntese, uma bela metáfora para descrever a corrida armamentista que rege a evolução das espécies.
O incrível é que, mesmo gozando de aceitação na comunidade científica, somente às vésperas do lançamento do filme dirigido por Tim Burton, numa feliz coincidência do destino, conseguiu-se mostrar, pela primeira vez, com coisas vivas, evidências experimentais da hipótese da Rainha Vermelha. O resultado de um estudo conduzido por cientistas britânicos (Paterson et al., 2010), publicado na edição de 11 de março da revista Nature (v.464, p.275-278), provou que a coevolução de organismos antagonistas (vírus x bactéria) acelera a evolução molecular. A hipótese da Rainha Vermelha foi confirmada pela demonstração de que, espécies em competição, dirigem a evolução molecular, através da seleção natural para adaptação e contra-adaptação. Quando a bactéria evoluiu em seu mecanismo de defesa, o vírus evoluiu mais rapidamente em diversidade.
Alice e seu mundo de fantasias são parte do legado, deixado pelo professor de matemática da Universidade de Oxford e diácono da Igreja Anglicana, Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), que é mais conhecido pelo pseudônimo Lewis Carroll. Sobre Dodgson, um homem solitário, apaixonado por fotografia, que não tinha amigos e vivia buscando a companhia de meninas (menores de 10 anos), pairam especulações e controvérsias. As obras sobre Alice foram escritas, a pedido de Alice Liddel, para Ina, Alice e Edith, as três filhas pequenas de Henry Liddel, que era o reitor da Universidade de Oxford, sob inspiração de um passeio no Tâmisa, a partir de uma história contada por Dodgson para distraí-las. A Alice real (Alice Liddel) é inclusive, uma das meninas fotografadas por Dodgson, cujo acervo de imagens e de cartas, que sobreviveram à sua morte, deixa dúvidas se o seu interesse por meninas era inocente ou sinal de um desvio de conduta sexual (pedofilia). Um dos segredos de Lewis Carroll, descoberto em tempos relativamente recentes, refere-se às doações que ele fazia para instituições infantis de caridade, especialmente àquelas que protegiam vítimas de abusos sexuais e maus-tratos. As somas vultosas e doadas anonimamente, segundo Jenny Woolf, que revelou essa particularidade do escritor no livro The Mystery of Lewis Carroll, não necessariamente sugerem que ele tentava aliviar a sua consciência.
Charles Dodgson, mesmo tendo escrito inúmeras obras sobre matemática, com destaque para os livros Euclides e seus rivais modernos e Lógica simbólica, foi, com o passar dos anos, saindo de cena e cedendo lugar para Lewis Carroll.
Os dois sonhos de Alice, realçados pelas ilustrações de John Tenniel, mais que contos de fadas, se parecem a pesadelos. E, quem sabe, não são mais que meros reflexos dos sentimentos do autor.
Coluna originalmente publicada em 29/04/2010.
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